António Martinó de Azevedo Coutinho
Era o tempo das longas e penosas filas dos racionamentos, na luta quotidiana pela sobrevivência com um mínimo de dignidade.
Para aqueles que, como eu, vivíamos os tempos descuidados da infância - terminara a escolaridade primária e espreitavámos novas aventuras no liceu ou na escola técnica - um dos mais fascinantes passatempos colectivos era constituído pela organização das fabulosas colecções de cromos desportivos que embrulhavam lambuzados caramelos. Penso que, hoje, os rigores inquisitoriais da ASAE proibiriam liminarmente tal prática...
Digo colectivos porque só no seio das trocas podíamos aspirar à formação de equipas completas e, supremo desígnio, à compra do “fundo da lata” onde estava a peça única que dava acesso ao prémio máximo: uma bola de cautchu presumivelmente autêntica.
O futebol era, então, uma prática cuja popularidade estava isenta dos extremismos de agora, paixão mais salutar de tempos livres, ocupação quase obrigatória nas presenças ao vivo, na audição dos relatos radiofónicos, na leitura compulsiva da “bíblia” (leia-se: d’A Bola), ou na discussão que prolongava pela semana dentro as incidências do jogo nosso de cada domingo. Tudo era então mais saudável e natural sobretudo porque ainda não tinham sido inventados alguns dos malefícios contemporâneos que conspurcam o actual futebol: as repetições televisivas dos lances mais polémicos, os infalíveis comentadores, os dirigentes corruptos e incompetentes, o dopping, os árbitros parciais ou míopes, as claques arruaceiras e os salários em atraso.
A 10 de Junho de 1944 fora solenemente inaugurado o Estádio Nacional, mas a nossa prestação futebolística internacional, ao tempo, era bastante modesta. No ano seguinte empataríamos aí com a Espanha (2-2), indo depois perder em Madrid por 2-4. Logo a seguir até a Suiça no venceria, em Basileia, por 1-0... De notar que todos os nossos quatro golos foram marcados pelo famoso avançado-centro do Sporting, Fernando Peyroteu, uma espécie de versão branca, avant-la-lettre, do futuro astro Eusébio, e como este também “importado” das Áfricas.
Aqui, no saudoso estádio da Fontedeira e acabado de ascender à II Divisão Nacional, o Desportivo tinha no goleador Cristóvão Canário a sua figura máxima, ele que tinha nascido e brilhado no rival Estrela.
O seu irmão Carlos, jogador de grande qualidade, tinha já sido “exportado” para o Sporting da capital...
Este e os seus companheiros de equipa, e também do Campeonato Nacional da I Divisão na época 1944/45, são os componentes essenciais da colecção de cromos que parcialmente aqui se reproduz.
Caramelos Futebolistas de Portugal - Grande novidade em fotografias coloridas - Fábrica Universal - António E. Brito, Rua da Alegria, 22 - Telf. 25628 - Lisboa - eis a breve apresentação patente na sugestiva capa da caderneta. Da contra-capa constavam as indicações “técnicas” inerentes à colecção que integrava 14 equipas e 154 jogadores em meio-corpo. Estas 14 equipas eram, seguindo a ordem da própria caderneta: Sporting, Benfica, Belenenses, Porto, Atlético, Estoril, Olhanense, Setúbal, Guimarães, Boavista, Académica, Famalicão, Elvas (com o inesquecível Patalino) e Oliveirense.
Escolhi cinco equipas, as dos “quatro grandes” (Sporting, Benfica, Belenenses e Porto) e a da Académica de Coimbra. A quem possa estranhar a inclusão dos “azuis” de Belém, lembrar-se-á que esta equipa era, ao tempo, pelo menos tão poderosa como a da capital do Norte. Quanto aos estudantes, estes incluiam um dos mais portentosos jogadores portalegrenses de todos os tempos: Tótó Bentes, o “rato atómico”. Ainda me lembro de o ver aqui jogar... e deslumbrar!
Este conjunto integra algumas das maiores personalidades futebolísticas desses fascinantes anos 40: Azevedo, um guarda-redes lendário; Jesus Correia e Albano, dois dos famosos “cinco violinos”; Francisco Ferreira, médio de grande qualidade; Julinho, Espírito Santo e, sobretudo, Rogério, três avançados inesquecíveis; Capela, Vasco e Feliciano, as “três torres de Belém”; Barrigana, guarda-redes de mérito; Araújo, Correia Dias e Catolino, dianteiros nortenhos que deixaram marca e rasto; Mário Reis, Faustino ou o Dr. Lemos, nomes com memória entre os capas negras...
Naturalmente, dada a nossa condição de portalegrenses, são as figuras já desaparecidas de Carlos Canário e António Bentes que mais de perto falam ao nosso coração bairrista. Porém, integrados numa peça de colecção onde se fundem este sentimento e a grata lembrança de muitas décadas, eles constituem hoje pretexto e razão para partilhar vivências de tempos já distantes, embora duros e difíceis, em que o futebol valia a pena.