PARA ACABAR DE VEZ COM A CULTURA?
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Provavelmente isto acabará mal. O recurso ao cinema tornou-se, assim o receio, uma obsessão pessoal. Terá deixado, talvez, de constituir uma referência cultural ou uma imagem de marca. Reconheço pacificamente esta inclinação como uma queda, um trambolhão. No entanto, dadas as especiais características desta peça, que me seja perdoado este (eterno) retorno. Ainda por cima, nem sequer posso jurar um acto de contrição, sincero, prometendo emendar-me.
É a cultura, estúpido! – a frase, de valor universal embora com origens ignoradas, tem servido um pouco para tudo e para coisa nenhuma. Há peças de teatro, programas de TV, mesas redondas, blogs e textos avulsos, assim como mil e um outros pretextos para a aplicar, para dela usar e abusar, a propósito e a despropósito, por tudo e também por nada...
Cultura e cinema. Provavelmente, hoje, deverei associar cultura, cinema e literatura. Por outras palavras, evoco um nome incontornável da 7.ª Arte, mas citando-o a propósito da sua obra literária. Podemos não apreciar Woody Allen, e acho isso natural. Porém, não devemos ignorá-lo. Homem de cultura, tem espalhado e distribuído o seu génio multifacetado não apenas pelas telas das salas mas ainda pelas estantes das livrarias. E hoje trago aqui a lembrança de um dos seus livros, precisamente Getting Even (1971), título que entre nós conheceu a tradução: Para acabar de vez com a Cultura. Ao contrário daquilo que esta designação poderia sugerir, o conteúdo do volume nada tem a ver com divagações filosóficas em torno da Cultura, em vias de extinção, mas antes com a proposta do confronto de cada leitor com uma série de pequenos contos e novelas, episódios soltos, dotados daquele humor desconcertante e inteligente de que Woody Allen nos tem dado sobejas provas nos seus filmes.
Lembrei-me, e insistentemente, deste autor e desta sua obra a propósito daquilo que hoje se tem passado com a recente nomeação de Francisco José Viegas para a secretaria de Estado da Cultura, no novo Governo agora em funções.
Do que conheço sobre o novo governante, como homem de Cultura viva, actuante e diversificada, chego mesmo a pensar que ele poderia subscrever um livro similar, pensado, escrito, editado, lido e criticado entre nós.
(que cada um leia esta declaração como um elogio ou como uma censura, em conformidade com as suas tendências literárias ou... partidárias)
O que mais me impressiona sobre algumas afirmações públicas e publicadas, absolutamente categóricas, acerca da “despromoção” oficial da Cultura Pátria agora “decretada” por Pedro Passos Coelho é a total ausência de memória, de lógica e de rigor que elas revelam. Por outras palavras, segundo tão “doutas” opiniões, uma pasta que deixa de ser ministério para passar a secretaria de Estado perde, ipso facto, qualidade e importância. E o seu titular, por ter deixado de ser ministro e ter sido “despromovido” a secretário de Estado, perde, idem aspas, capacidade de actuação.
Façamos uma brevíssima retrospectiva sobre o percurso governamental dos assuntos culturais, entre nós, após Abril de 74. Até 1976, a superior execução das políticas culturais foi atribuída aos sucessivos ministérios da Educação.
Com a posse do I Governo Constitucional (1976, Mário Soares), foi criada a secretaria de Estado da Cultura (SEC), a qual, embora autónoma, ficaria na dependência da Presidência do Conselho de ministros.
No período seguinte, até 1983, a tutela desta secretaria de Estado alternou entre aqueles dois anteriores “titulares”.
Em 1983, com o IX Governo Constitucional (novamente Mário Soares), a SEC atingiu o estatuto de ministério. Por pouco tempo, pois logo no governo seguinte, dois anos depois, voltou a secretaria de Estado, integrada no ministério da Educação e Cultura.
Mais dois anos passaram, com novo figurino velho que repetiu um cenário anterior, voltado a SEC para a tutela directa da Presidência do Conselho de ministros (X Governo Constitucional, Cavaco Silva).
O XIII Governo Constitucional (António Guterres), em 1995, “ressuscitou” o ministério da Cultura, assim se mantendo até à mais recente actualidade, quando a coligação do XIX Governo extinguiu outra vez o ministério, como se sabe...
E sobre personalidades que foram ministros ou secretários de Estado em sucessivos governos da Nação? Alguém, sobretudo de entre os críticos, alguém se lembra quem foram e quando, ou o que produziram de útil e de durável, nesta área da Cultura?
Meia dúzia de exemplos soltos. José Estêvão Cangarro Sasportes e João Alexandre do Nascimento Baptista foram ministro e secretário, entre 2000 e 2001. Quem se recorda deles? Então, e quanto a Pedro Manuel da Cruz Roseta e José Amaral Lopes, idem, entre 2002 e 2004? Talvez haja quem se lembre de João de Deus Pinheiro, António Coimbra Martins ou Francisco Lucas Pires, ministros na década de oitenta... Acredito que ainda esteja na memória de uns quantos o facto de Pedro Santana Lopes ter sido secretário de Estado da Cultura por duas vezes, em governos liderados por Cavaco Silva, em 1990/91 e 1991/94. Sabem que Vasco Pulido Valente também foi, durante um ano, secretário da Cultura? Foi em 1980... E qual é o nome do sub-secretário da Cultura que provocou a real bronca que fez exilar José Saramago? Já não se lembram? Foi António Sousa Lara, em 1992.
E, como se viveram recentemente tempos de exames (copiando ou não!!!), até se poderia aqui formular uma espécie de mini-teste, com duas singelas questões:
· 1 – Quem foi o secretário de Estado da Cultura que aqui veio festejar José Régio e os seus companheiros “regionais” da presença: Francisco Bugalho, Branquinho da Fonseca e Mário Saa?
- Foi em 1977 e chamou-se David Mourão-Ferreira (um literato).
· 2 – Quem foi o ministro da Cultura, mais recente, já na passagem do milénio, a quem Portalegre mais ficou devendo?
- É Manuel Maria Carrilho (um filósofo), provavelmente um dos mais competentes e lúcidos políticos que geriram a pasta da Cultura. Quanto ao que fez por Portalegre, espero que cada interessado se informe devidamente, para além do que ficou à vista de todos...
Voltemos ao cultural presente. Gabriela Canavilhas, a derradeira titular ministerial de um passado recente, de má lembrança, quis marcar a diferença. Segundo veio a público, ela terá falado da importância estratégica da representação (cultural) do Estado. E acrescentou esta “pérola”: - Qual o peso que têm nas reuniões internacionais os secretários de Estado e qual o peso que têm os ministros? Na directa sequência desta avaliação da massa (não certamente da encefálica!), concluiu que Viegas poderia dar um excelente ministro da Cultura mas que infelizmente não lhe fora reconhecido esse mérito.
A verdade é que da “canavilhal” memória, para além de um volátil charme pessoal, nada, mas mesmo nada, ficará de préstimo para o nosso futuro; a inesquecível Gabriela da telenovela desempenhou certamente um bem mais decisivo papel na cultura nacional. Teriam sido portanto dispensáveis aqueles seus deselegantes remoques...
Francisco José Viegas dispõe de um invulgar currículo, e não falo da banal acumulação de teorias, mas de aplicações práticas e diversificadas: filho de professores do ensino primário, licenciou-se em Estudos Portugueses e foi, ou é, escritor (mesmo do policial), poeta, cronista, professor universitário, jornalista (até desportivo!), editor, autor e apresentador de TV e de Rádio, director da Casa Fernando Pessoa, autor literário laureado e traduzido, etc, e, sobretudo, administrador de um magnífico blog de que me habituei a ser um fiel leitor: A Origem das Espécies.
Como é óbvio, parece desmedido e plurifacetado o universo que espera a intervenção do novo secretário de Estado da Cultura. Depois de anos de quase total abandono, esse universo apresenta-se numa fase de latente desertificação... O Ministério da Cultura bem poderia ter entretanto mudado de nome. Poderia ter sido chamado, com mais propriedade, o Mistério da Cultura.
Ninguém deve ser acusado sem razões nem pode ser condenado sem provas. Na proporção do meu direito de cidadania, sou exigente. Ainda há escassos dias, neste espaço de liberdade, dei conta do exemplo de Va Pensiero, espécie de fábula moderna onde são implacavelmente denunciados abandonos e constrangimentos governamentais na área da Cultura.
Acredito que Francisco José Viegas seja capaz de nos dedicar um novo título de criação pessoal, como, por exemplo: Para acabar de vez com a cultura. Sim, cultura com letra pequena, a cultura da subsidiocracia, da vulgaridade, do snobismo, da extravagância, do vedetismo, da inveja, do oportunismo e de outros vícios que vegetam nos sub-mundos da intelligentzia nacional.
Ficarei vigilante, mas carregado de esperança.
António Martinó de Azevedo Coutinho