António Martinó de Azevedo Coutinho
UM LIVRO COM MEMÓRIAS DENTRO
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Há duas semanas fui surpreendido por um contacto telefónico completamente inesperado. A minha interlocutora explicou-me ter conseguido, embora com dificuldade, o meu número telefónico. Tinha-o obtido em Beja, por intermédio dum amigo do universo da banda desenhada (Geraldes Lino), quando num recente festival dos quadradinhos aí apresentara a sua última obra publicada.
A conversação, que se prolongou por uma boa meia hora, remeteu-me para uma época profissional e pessoalmente muito grata, aqueles quinze ou dezoito anos que se seguiram à Revolução de Abril.
Com Elisabete Silva Oliveira recordámos então, em conjunto, as aventuras que ajudaram a consolidar a forma e, sobretudo, o espírito da Educação Estética Visual, num País que então acreditava no Futuro e que dispunha de inabaláveis certezas sobre o incontornável papel que a Escola desempenharia nesse processo de (re)construção.
Daí a dias chegou-me, pelo correio, o volume. Educação Estética Visual Eco-Necessária na Adolescência é o seu título, “explicado” a seguir -Sete Décadas de Design Curricular em Portugal- e complementado por um CD anexo -Valoração do Processo Criativo pelo Professor. “Devorei-o”, é não é fácil fazê-lo, pela dimensão física das suas mais de trezentas páginas, carregadas de denso, preciso e precioso material. Também vi, e revi, o impressionante acervo documental contido no disco.
Essa experiência pessoal não foi a de um simples leitor. À modesta dimensão do meu papel, senti-me ali, também, um protagonista. Portanto, enquanto lia, acompanhava a leitura com uma grata retrospectiva de saudosos tempos, numa espécie de desfilar de memórias carregadas de pessoas, de sítios e de acontecimentos.
Elisabete Oliveira foi uma das mais empenhadas intervenientes no processo de afirmação e valorização duma área curricular que nem sempre dispôs de direitos de cidadania no concerto das disciplinas suas pares, ao nível de qualquer grau de escolaridade. Área curricular que -anote-se o lamentável retrocesso- perdeu hoje uma boa parte da justa dignidade já atingida.
Na sua obra, recordando com inteira justiça personalidades entre nós pioneiras neste duro caminho de afirmação da Educação Estética Visual, como Betâmio de Almeida (com quem estagiou) e Calvet de Magalhães (com quem trabalhou), Elisabete Oliveira traça depois as linhas essenciais dum percurso que terá atingido o seu apogeu nos tempos posteriores a Abril de 1974. O seu papel como pintora, docente, formadora, planeadora e consultora oficial, conselheira mundial da UNESCO, conferencista e, sobretudo, como investigadora, culminou com o doutoramento em Ciências da Educação (2005). O trabalho agora publicado tem precisamente como base a tese de doutoramento, e integra episódios da grata oportunidade pessoal que me foi proporcionada, quando modesta e empenhadamente me bati, em tempos heróicos, pelo processo de valorização dessa área curricular.
Entre outros temas, complementares, foram sobretudo dois os titulares essenciais dessa participação: a banda desenhada, enquanto pioneiro pretexto curricular, e a comunicação pela imagem, sobretudo a praticada na Operação ICAV, justamente considerada na obra em apreço como uma das mais conseguidas experiências pedagógicas alguma vez desenvolvidas em Portugal.
O livro e o disco de Elisabete Oliveira contêm banda desenhada da minha autoria e a transcrição parcial de um estudo pessoal sobre as implicações pedagógicas e sócio-culturais da BD, elaborado em 1976 a convite da Secretaria de Estado da Orientação Pedagógica e distribuído, como documentação e texto de apoio, aos professores do 7.º ano da escolaridade. Além disso, constam da obra algumas referências à minha activa participação em diversas iniciativas da Operação ICAV, tanto em França como em Portugal. O testemunho alusivo de algumas qualificadas companheiras de jornada, como Leonor Oliveira e Isabel Estrela, as significativas referências de Hélder Pacheco e Isabel Cottinelli Telmo, a persistente e justíssima lembrança de saudosos colegas já desaparecidos, como José Antunes da Silva, Rosinda Vieira ou Conceição Mendes (Concas), a presença, discreta mas real, de outros velhos amigos como Carlos Madeira, Alda Rodrigues, Jorge Bilhau, Manuela Costa, Carlos e Florinda Franca, José Bizarro e outros, tudo ali está. E muito mais...
Por mágicos instantes fui transportado para experiências únicas, intensamente vividas nesses fascinantes anos, revivendo-as agora numa saudade temperada pela memória, aqui grata, ali dolorida, mas sempre reconfortante, sobretudo porque de todo inesperada, a partir da “provocação” desencadeada por Elisabete Oliveira e pela sua notável obra, onde se inserem setenta anos duma história que vale a pena conhecer e divulgar. Dos capítulos partilhados, nem sei quais privilegiar, numa amálgama de sentimentos que se desprendem de mil episódios pessoais: os regulares “retiros” na solitária e quase perdida Praia Grande, onde discutíamos, avaliávamos e planeávamos os projectos colectivos desencadeados pelo ICAV; um fascinante tempo de férias de carnaval, talvez em 1966 (ou seria em 1967?), transformado em inesquecível acção de formação intensamente vivida na Escola Francisco de Arruda sob a responsabilidade directa de Mestre Calvet de Magalhães; uma prolongada e frutuosa reunião de trabalho ICAV, colectiva, aqui em Portalegre (Março de 1981), com a participação do próprio René la Borderie; a experiência, única e irrepetível, de ter criado, com o António Ventura e o Aurélio Bentes, a revista A Cidade (entre 1981 e 1984); sucessivos anos lectivos de grande e valiosa participação da nossa Escola Preparatória de Cristóvão Falcão, transformada em cadinho de iniciativas pedagógicas inovadoras, de mútiplos estágios de formação em serviço, de sucessivas experimentações de novos programas e de diferentes currículos, enfim, de apaixonadas e apaixonantes vivências quotidianas assumidas numa excepcional dinâmica colectiva; a eficaz acção que “ressuscitou” José Régio, outra parceria com o Ventura e o Bentes, em 1984, à revelia dos poderes oficiais; os períodos de intensa formação, e convívio, em França, subindo às alturas nas dunas do Grand Pilat, descendo às profundezas das grutas de Villars, ou gritando ao ar livre e a plenos pulmões, com os irmãos gauleses do Périgord, na contagiante euforia da vitória de Miterrand; os tempos heróicos de implantação do Parque Natural, com o saudoso Luís Bacharel e o dinâmico Rui Correia; também aqui, mais tranquilamente, mas partilhando o mesmo empenho, as aventuras do Centro de Estudos de Banda Desenhada ou do pioneiro Festival de Diaporama, este em Novembro de 1981; as activas participações pessoais -e foram mais de sessenta entre 1978 e 1991- em tudo quanto foi colóquio, curso, conferência e seminário, de norte a sul, do litoral ao interior, quando a BD ou a comunicação pela imagem tal “exigiam”...
É imensa a minha gratidão para com todos os que acreditaram na minha capacidade para partilhar as exigências desses tempos duros, mas estimulantes e criativos, e convictamente me aceitaram como parceiro em tais projectos.
Um livro com memórias dentro. Mesmo que não provoque um semelhante regresso ao Passado -que isto é pessoal e intransmissível-, todos aqueles que se interessem pela história dos processos pedagógicos postos em acção em tempos fascinantes poderão perceber, um pouco, como e porque podem aqueles ganhar-se ou, sobretudo, perder-se pelos “acidentes” do percurso. Assim parece apresentar-se, infelizmente, o panorama do Presente.
Mas esta história de sete décadas de luta em prol da Educação Estética Visual, com os seus avanços e recuos, pode e deve representar, acima de tudo, um forte incentivo para a (re)conquista do Futuro.
Esta é a lição teórica, bem como o instrumento prático, que nos traz Elisabete Oliveira.
Pela minha parte, muito obrigado.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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