António Martinó de Azevedo Coutinho
UM DIA NAS CORRIDAS
É o título de um filme com 75 anos, de quem poucos se lembrarão. Um Dia nas Corridas, realização de Sam Wood, foi e é uma fita dos fabulosos irmãos Marx, Groucho, Chico e Harpo. Cómico até às lágrimas, nomeadamente se levarmos em conta os critérios humorísticos norte-americanos do tempo, é hoje um filme de arquivo, dos que marcam um género e uma época.
Aqui e agora, muito mais modestamente, Um Dia nas Corridas é apenas um texto pessoal e quase ignoto, laboriosamente fabricado para preencher mais uma crónica dedicada a esta recente secção A Cor do Horto Gráfico.
Ele aqui vai, quase, quase, como uma redacção da saudosa Guidinha, a da Mosca, lembram-se?
Um dia nas corridas
Foi um notável dia. A praça, engalanada a preceito, foi um magnífico cenário. Nessa segunda feira, lá fora, havia movimento, vida e cor. Na véspera, a feira inicial tinha sido assim, com os feirantes animados por causa da agitação envolvente. Voltemos para dentro da praça. O touro tivera uma receção emocionante. Mas os espetadores não estiveram à altura, falhando no seu papel. Mostraram-se pouco animados. Depois, entrou uma vaca. O teto, baixo, pesado e escuro, prometia tornar-se úmido. Felizmente isso não aconteceu, senão a ata da sessão teria de assinalar o facto. No intervalo, distraídos, uns vão, mas no decorrer da corrida todos, mesmo todos, veem com atenção. Quando o touro para todos ficam aflitos. O grupo de forcados, formado em semirreta, foi pegando os superrápidos animais, numa correta aceção da sua função. Em cada setor houve inquietação, mas apenas por causa do tempo, ameaçador. Enfim, tudo correu bem. E, após a sessão, todos regressaram a casa. Até ao próximo dia nas corridas, coincidindo com a quarta feira festiva, com barracas, massa frita e o resto...
Ficaria mais ou menos assim esta delirante descrição, fictícia, elaborada com o novo prontuário em punho. Para não falhar nos pormenores.
Se tivesse escrito como aprendi e costumo praticar, sem recurso à Novilíngua, seria distinta a mesma descrição:
Um dia nas corridas
Foi um notável dia. A praça, engalanada a preceito, foi um magnífico cenário. Nessa Segunda-feira, lá fora, havia movimento, vida e cor. Na véspera, a feira inicial tinha sido assim, com os feirantes animados por causa da agitação envolvente. Voltemos para dentro da praça. O touro tivera uma recepção emocionante. Mas os espectadores não estiveram à altura, falhando no seu papel. Mostraram-se pouco animados. Depois, entrou uma vaca. O tecto, baixo, pesado e escuro, prometia tornar-se húmido. Felizmente isso não aconteceu, senão a acta da sessão teria de assinalar o facto. No intervalo, distraídos, uns vão, mas no decorrer da corrida todos, mesmo todos, vêem com atenção. Quando o touro pára todos ficam aflitos. O grupo de forcados, formado em semi-recta, foi pegando os super-rápidos animais, numa correcta acepção da sua função. Em cada sector houve inquietação, mas apenas por causa do tempo, ameaçador. Enfim, tudo correu bem. E, após a sessão, todos regressaram a casa. Até ao próximo dia nas corridas, coincidindo com a Quarta-feira festiva, com barracas, massa frita e o resto...
Claro que imperou aqui a imaginação, mas também o deliberado disparate. Disparate, acrescente~se, devidamente sancionado pelo diploma legal que contém o dolicodoce accordo ortographico. Intencionalmente, introduzi uma quase indescritível confusão em sucessivos sentidos, equívovos, do fraseado inicial. A obrigatoriedade do uso de minúsculas produz uma delicada confusão entre o dia da semana e uma série de feiras tradicionais; os espetadores podem perfeitamente ser os bandarilheiros, espetando as (subentendidas) farpas, e não o público assistente; o teto, o mesmo que teta -da vaca-, nada tem a ver com o tecto -céu- e a (h)umidade confunde facilmente o leite com a água (da chuva); ir e vir não será precisamente o mesmo que ir e ver; o touro para todos pode ser popular mas não pára a tempo de evitar a aflição; úmido, semirreta, superrápidos ou setor são alguns dos vocábulos admitidos pelos geniais inventores desta delirante modalidade “novilinguística”... E por aí fora. Até poderíamos ter complicado o texto, dele apresentando previamente, antes da “tradução” em Português, duas outras versões distintas, segundo a norma lusoafricana e a norma brasileira...
Foi um dia nas corridas, em sumário relatório descritivo, afinal contando com os cómicos irmãos Marx, tal como há 57 anos, no cinema.
António Martinó de Azevedo Coutinho
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home