Tintin no Congo. Há 25 pequenas crónicas atrás, iniciava neste blog a tentativa pessoal de analisar a história com alguma profundidade, nos termos que então esbocei, como admirador de Hergé mas, simultaneamente, sem perder de vista a independência possível assim como o necessário e permanente sentido crítico.
Coerentemente, é na manutenção do respeito por esta forma de estar que decidi encerrar agora o dossier. Em boa verdade, sinto que muito mais havia a dizer e, por isso, não recuso a hipótese de um dia voltar ao tema.
O pretexto próximo deste trabalho, que ocupou alguns meses de investigação, de reflexão e de produção, foi a acusação de racismo e xenofobia subscrita pelo cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo contra o álbum. No momento em que estas linhas são compostas, pelos finais de Julho de 2010, não se pode prever com segurança como vai decorrer a fase seguinte do processo judicial prevista para Setembro deste ano, antes ainda da divulgação pública deste “epílogo”.
Porém, não é difícil admitir que o caso se arrastará, nesta instância ou noutra, mantendo-se em aberto a hipótese de uma declaração de incompetência do próprio tribunal. Seja qual for o resultado final do pleito -se algum dia isso acontecer!?-, poderemos desde já concluir que desta agitação de consciências e deste confronto de posições restarão algumas consequências positivas. Uma delas, plenamente atingida, foi a discussão dos conteúdos, das formas, dos objectivos, das declaradas ou secretas intenções de uma obra literária, por mero acaso um álbum de banda desenhada com a provecta idade de umas largas dezenas de anos editoriais. Outra, por inerência mas não menos importante, foi a abordagem ideológica e crítica a um fenómeno sócio-político-histórico-cultural -o racismo e a discriminação- que convém, pedagogicamente, nunca esquecer, como um eco do Passado com resíduos no Presente, tornando-o uma lição positiva para o Futuro.
O álbum não foi esgotado nas suas hipóteses de análise crítica, e disso quero deixar na despedida alguns breves exemplos.
Um é de sinal aparentemente contraditório, colhido como quase sempre aconteceu na perspectiva de uma evolução entre as versões mais significativas, a de 1930 e a de 1946.
Refere um episódio da fase da viagem no paquete, quando Milou é retirado da água pela tripulação de uma pequena lancha. Enquanto na versão original os marinheiros são brancos, estes tornam-se negros a quando da reformulação posterior. A primeira explicação apontaria para conceder aos negros uma louvável intervenção -o salvamento do “náufrago”- anteriormente atribuída aos brancos. Assim, esta mudança apontaria para uma ausência de qualquer sinal de discriminação racial.
Vejamos agora a mesmíssima alteração por um outro prisma. Sendo a marinhagem do paquete -a base da sua pirâmide hierárquica- constituída originariamente por negros (o camareiro, o artesão, o marinheiro...) e por também por brancos (os tripulantes da lancha), então por que mostrar agora que apenas negros passam a integrar este “primário” grupo? Assim, esta mudança apontaria para a introdução de um intencional traço de discriminação racial.
O outro exemplo, também uma vinheta e a sua “evolução”, diz respeito à condução do gang de Dawson sob custódia policial. Na versão original, um dos soldados negros que escoltam os brancos, diz: “Isto é bom! Os senhores maus já não farão mal a Tintin... Vamos levá-los para a prisão...”
Depois da “revisão”, Hergé pô-lo a dizer: “Isto é bom!... Os maus Brancos vão todos para a prisão!...”
Aqui e agora não há o risco de qualquer equívoco interpretativo. A mudança assinala, de forma indiscutível, a ausência de toda e qualquer discriminação racial em Hergé, na auto-avaliação das suas personagens, colocando negros (bons) a deter brancos (maus) e, sobretudo, realçando esta circunstância na nova fala do agente policial. Agora, a fundamental importância daquela detenção não será mais a de que os senhores maus já não farão maldades a Tintin, mas a de que os Brancos maus (assinalo deliberadamente as palavras!) vão todos para a prisão...
Uma leitura mais atenta e menos estereotipada do álbum talvez pudesse ter conduzido o senhor Bienvenu a outra decisão, oferecendo, aliviado, a história aos seus sobrinhos. Concedo-lhe, porém, o benefício da dúvida: quatro dias são um prazo demasiado curto para uma reflexão isenta e, portanto, honesta...
Um terceira -e definitiva- alusão ao álbum remete-nos para uma área interessantíssima, pouco explorada no que ficou atrás exposto. Refiro os aspectos puramente culturais da história, sobretudo quando tocam raízes tradicionais congolesas. Um excelente exemplo a propósito desta temática é o da canção entoada pelos jovens remadores da piroga que conduz Tintin e o missionário, bem reveladora do apreço que Hergé sempre manifestou pelas suas fontes.
Correspondendo a uma canção autêntica do folclore tradicional congolês, no dialecto lingala, é possível descodificar o seu interessante significado e recordar as suas ligações ao imaginário da ficção local, na lenda que lhe está associada. Aqui fica, portanto, a sugestão de novas e prometedoras análises de um álbum de grande complexidade e de inegável interesse.
Tintin e Hergé despertaram um interesse autêntico, antecipando aquele que o filme de Spielberg, a estrear no próximo ano, vai despoletar. É possível perceber a dimensão quase universal que a presente querela criou, nomeadamente em meios culturais de nível muito significativo. Foram publicados dezenas de artigos, efectuadas inúmeras entrevistas, montadas muitas reportagens, realizadas bastantes mesas redondas, tudo sobre o momentoso caso. Naturalmente, as suas sequelas manter-se-ão, subirão de tom em momentos oportunos e torna-se difícil adivinhar-lhes o termo. Como exemplo do real interesse despertado, destaca-se uma revista de imprensa televisionada sobre o processo de Tintin no Congo, organizada pela France 3, onde participaram, entre outras personalidades, o actor Michel Piccoli e o sociólogo Edgar Morin. Este último é, apenas, um dos mais respeitados pensadores mundiais do nosso tempo.
Vale por isso a pena reflectir sobre a posição serena e equilibrada exposta por Edgar Morin sobre o polémico processo.
E vale também a pena considerar o presente caso como paradigmático quanto à crescente importância concedida à forma e ao conteúdo de grandes obras, em domínios da ficção -literatura, cinema, teatro, pintura, banda desenhada, etc.- no seu encontro (ou recontro!?) com os direitos humanos.
Por mim, esforcei-me por mostrar como e porque me senti impelido a participar no debate.
Repito-me: Tintin no Congo? Sim! E para sempre.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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O clip vídeo seguinte mostra uma curta reportagem sobre a revista de inprensa televisiva organizada pelo Canal France 3, onde participaram, entre outros, Michel Piccoli e Edgar Morin. Em língua francesa, este apontamento mostra o equilibrio e a serenidade com que questões delicadas como esta esta devem ser tratadas de forma exemplarmente pedagógica.
Entrevista Edgar Morin
Para terminar esta série de reflexões sobre Tintin no Congo, fica aqui um simbólico documento que representa uma homenagem a Hergé, pela honestidade que procurou conferir à sua obra, suprindo as limitações na informação pública do seu tempo. A divulgação desta bela canção significa também o meu respeito para com as ricas tradições culturais de uma região e de um país da África ainda desconhecida. E, acima de tudo, desejo manifestar simbolicamente o carinho que merecem as crianças congolesas, bem dignas de um futuro livre de todas as guerras, na justa e segura tranquilidade que lhes permita ler este e outros álbuns, capazes de alimentar o sonho e de justificar a esperança num mundo melhor.
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