Bienvenu Mbutu Montondo é um cidadão congolês estudante de Ciências Políticas em Bruxelas, na Bélgica. Há cerca de três anos, ele decidiu abrir um processo judicial, baseado numa lei belga que reprime o racismo. O objecto das suas persistentes demandas é um simples álbum de banda desenhada -Tintin au Congo- publicado originalmente em 1930/31. Ele pretendia a interdição desta obra, em virtude do seu carácter racista, ofensivo para com os negros.
Porém, as coisas não estão a correr completamente de feição para o senhor Bienvenu, que terá mentido ao tribunal sobre a sua profissão e que nem sequer parece dispôr de recursos suficientes para custear as despesas do processo e para pagar os honorários dos seus sucessivos advogados.
O tribunal, que vem adiando uma decisão definitiva, emitirá em breve um novo despacho sobre a questão, embora não esteja de todo descartada a hipótese de se considerar incompetente para julgar a matéria em apreço.
Muito recentemente, o senhor Bienvenu, através de um novo advogado, parece ter modificado as suas acusações, pretendendo agora que o álbum seja retirado do mercado livreiro, ou que lhe seja apenso um aviso onde se informe qualquer interessado sobre o seu conteúdo ofensivo para os negros.
Nesta oportunidade, surgiu uma nova testemunha de acusação, o presidente do CRAN (Conselho Representativo das Associações Negras na França), o qual declarou que o lugar do livro é num museu, onde apenas possa ser consultado por adultos que queiram informar-se sobre a época colonial. E acrescenta a opinião de que um prefácio obrigatório deve esclarecer o eventual leitor sobre a natureza da obra que afirma a superioridade racial dos brancos sobre os negros.
Enfim, se não vir satisfeitas as suas reivindicações, o acusador vai prometendo que fará chegar um apelo ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e também, talvez, à Comissão de Direitos Humanos da União Africana.
Atendendo a que neste ano se comemoram os 50 anos da independência da República Democrática do Congo (o antigo Congo Belga) e que o rei dos belgas, Alberto II, se prepara para concretizar uma próxima visita real à sua antiga colónia, o caso tem sido abundantemente tratado nos meios de comunicação social, até mesmo entre nós. Oportunamente, também o blog A Voz Portalegrense se fez eco da interessante disputa. Tudo isto tem feito correr imensa tinta. E promete fazer correr ainda muita mais...
Fará algum sentido atacar assim, precisamente agora, uma obra em quadradinhos divulgada desde há oitenta anos?
A verdade é que a iniciativa do senhor Bienvenu não surge isolada.
Basta atentar em alguns outros recentes episódios relacionados com Tintin au Congo. Por exemplo, a editora Little Brown, que iria reeditar esta obra nos Estados Unidos, decidiu retirá-la do seu planeamento. Quando publicar uma colecção “completa” da obra de Hergé, não divulgará essa sua aventura africana. Um porta-voz da editora, em declarações à Publisher's Weekly, explicou que “dada a controvérsia em torno do álbum, sentimos que incluí-lo ofuscaria a verdadeira intenção da colecção, que é apresentar a extraordinária arte de Hergé e a sua notável contribuição para as artes gráficas”.
A Comissão para a Igualdade Racial da Grã-Bretanha, em 2007, solicitara também a proibição do álbum em causa, alegando que o mesmo continha imagens e “palavras de hediondo preconceito racial, onde nativos africanos são retratados como macacos e falam como imbecis”. A edição britânica não deixou de ser vendida, mas agora só pode ser encontrada junto a outros livros destinados a um público mais adulto, e é revestida por uma faixa de papel advertindo que o conteúdo pode ser ofensivo. No entanto, a venda do álbum disparou... O Daily Telegraph noticiou um aumento de 4000% na sua procura... A livraria “on line” Amazon colocou-o mesmo na 8.ª posição do “ranking” dos livros mais populares...
Porém, este efeito chegaria à África do Sul, onde uma reedição de Tintin au Congo causou polémica. A editora local, Human & Rousseau, recusou-se a publicar a prevista versão em língua “afrikander”, devido às queixas de que a aventura retrata os africanos como sub-humanos, imbecis e meio selvagens...
Ficou no entanto célebre a defesa da obra que o ministro francês da Cultura e da Comunicação, Frédéric Mitterrand, fez publicar no Journal Officiel em finais de 2009, como resposta à polémica interpelação de um deputado, Christian Vanneste (das direitas presidenciais), que solicitara informações sobre a censura a Tintin au Congo exigida por algumas associações ligadas à extrema esquerda política. Mas não devemos esquecer que logo o Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos (MRAP), uma das mais importantes organizações francesas nesta área, se pronunciou com dureza sobre o assunto, solicitando à editora Casterman que incluísse numa nova reedição do álbum uma explícita chamada de atenção a propósito de preconceitos raciais. Em vão...
Provavelmente, o incidente mais grave acerca de Tintin au Congo terá acontecido, também em 2009, quando a Biblioteca Municipal de Brooklyn (Nova York) baniu o álbum das prateleiras de livre acesso público. O que, curiosamente, nunca acontecera a Mein Kampf, de Adolf Hitler, por exemplo. Segundo um comunicado da Biblioteca, para consultar doravante Tintin au Congo bastará preencher um formulário e esperar vários dias...
Logo veementemente criticaram a censória decisão algumas organizações norte-americanas, como a União de Liberdades Civis de Nova York (NYCLU) ou a American Library Association, entre outras.
No entanto, e como corolário destes globalizados extremismos, começa a esboçar-se em certos “sites”, como o Internet Cinematical, um movimento de boicote ao filme de Spielberg, ainda em rodagem, sobre uma aventura de Tintin.
Portanto, Bienvenu Mbutu Montondo é apenas o mais recente participante nesta já longa cadeia de acusações contra Tintin au Congo.
Enfim, o que parece estar em causa é uma grave questão de racismo despoletada por uma história em BD, com quase um século de existência. Pelo seu inegável interesse como pela curiosidade inerente, vale a pena analisar o tema com alguma profundidade.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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