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A Maçonaria no Distrito de Portalegre
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(…) A partir de 1990, a investigação universitária começou a investir neste objecto de estudo (a Maçonaria), mesclando-se aqui interesses comuns às instituições maçónicas e aos investigadores: as instituições maçónicas compreendem que a divergência entre as realidades da Maçonaria e a sua imagem pública é um handicap a considerar na sua vontade de alargar a base de recrutamento e de responder aos ataques de que foram e são alvo; os investigadores vêem neste grupo de partilha específico um vasto território de pesquisa, na verdade um case study, que ainda necessita de ser decifrado, já que os documentos disponíveis estão parcialmente por explorar ou não estão contextualizados. Esse esforço de exploração e de contextualização dos elementos documentais é realizado com inequívoca proficiência científica pelo Professor Doutor António Ventura em A Maçonaria no Distrito de Portalegre. (…)
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E entramos agora mais concretamente no trabalho de António Ventura: de facto, A Maçonaria no Distrito de Portalegre inscreve-se nesta nova perspectiva, utilizando com total disponibilidade as competências do historiador contemporâneo. E deve dizer-se que as de António Ventura são muitas e sólidas.
Em primeiro lugar é importante assinalar que estes trabalhos de investigação de regiões delimitadas geograficamente são tão importantes para se construir a verdadeira História da Maçonaria, instituição criada no Século XVIII na Inglaterra por um conjunto de gentlemen que partilhavam interesses e objectivos comuns, como os de índole mais abrangente. Penso mesmo que estas obras são indispensáveis, que sem elas é praticamente impossível chegar àquilo que poderíamos apelidar de grande História.Passo a passo, degrau a degrau, se organiza o discurso histórico. Afinal, qual é modo que a Maçonaria tem de estar na História, de a influenciar e de ser influenciada por ela? É justamente através do labor dos seus obreiros, desde os Aprendizes aos Mestres, das Oficinas de que são membros e das Obediências que as congregam. Saber nos difíceis tempos que correm como se manifestava esse labor, esse élan transformador, que levou, no distrito de Portalegre e noutras regiões, ao aparecimento de Triângulos e Lojas parece-me ser de suma importância.
A certo passo do seu estudo, lamenta-se António Ventura de que ele tem lacunas. Essas lacunas não são da responsabilidade do autor, que se empenhou com todas as armas ao seu dispor a investigar tudo o que havia para investigar, mas devidas à confusão e mesmo à ausência de informação cabal sobre homens e factos.
Impõe-se dizer que, para acreditar neste lamento, que é sincero, temos nos apoiar mais na afirmação de António Ventura, fruto da sua honestidade intelectual, do que no discurso que lemos, já que este está organizado de uma forma plenamente conseguida, assegurando sempre uma extraordinária fluidez de leitura, quando não até prazer ao atingir muitas vezes uma rara elegância estilística. Vê-se que o historiador, embora sem esconder as suas convicções, a sua paixão, soube, como lhe competia, respeitar plenamente os critérios de exigência científica e literária que hoje em dia um trabalho deste tipo exige.
Outro aspecto sobressai: é inegável a riqueza, a extraordinária profusão, de informações fundamentais que A Maçonaria no Distrito de Portalegre providencia. Isso permite ao leitor apreender um quadro excepcionalmente vasto e rigoroso das actividades maçónicas e dos homens que as praticaram na zona que corresponde hoje ao Distrito de Portalegre. Bastaria passar os olhos pelos títulos dos capítulos e das suas subdivisões para nos apercebermos desse traço, tão evidente ele é.
Efectivamente não conheço, e não creio que isso se deva a ligeireza da minha parte, outro trabalho tão definitivo no campo de investigação escolhido pelo autor. Desde obreiros a oficinas, nada fica por esmiuçar e por enquadrar no panorama mais geral da vida social e política portuguesa, com a particularidade de que, sendo o período estudado aquele que medeia entre 1903 e 1935, há referências muito importantes a factos e pessoas ligados à Maçonaria nos Séculos XVIII e XIX nesta região.
Diga-se, a propósito, que a Introdução, naturalmente sintética, como é conveniente que seja, se mostra particularmente esclarecedora quanto ao aparecimento da Maçonaria em Portugal e às vicissitudes que se viu obrigada a sofrer, quer devido a dissenções entre os seus membros provocadas por questiúnculas políticas quer devido às perseguições e ultrajes a que esteve sujeita.
As biografias, à volta de 300, tão completas quanto o permitem os materiais de consulta disponíveis, dão-nos a ideia da origem social dos maçons, permitindo chegar a conclusões muito importantes para perceber um aspecto essencial da Ordem: a estruturação do seu espaço social. Escreve António Ventura, a propósito da composição social das Lojas que trabalharam no Distrito de Portalegre no Século XX: “É evidente o peso determinante de uma pequena e média burguesia, com comerciantes, militares, proprietários, professores, médicos e funcionários públicos. Os trabalhadores manuais estão praticamente ausentes”.
Eis uma característica que é indispensável assinalar: daqui se retira a ilação, tantas vezes esquecida, de que a Ordem esteve sempre ligada àqueles sectores da sociedade que são mais vitais para a prossecução dos ideais de progresso e de democracia. (… )Por outro lado, ressalta da leitura desses dados biográficos a actividade benemérita que é apanágio da vida de muitos maçons, assim se compreendendo até que ponto, para eles, a intervenção social correctora de desigualdades é fundamental no seu modo de estar no mundo.
São inúmeros os Maçons que têm responsabilidades em associações culturais e cívicas ou que se dedicam a actos de pura beneficência em prol dos mais desfavorecidos. É ainda notável, pela cópia de informações recolhidas, o modo como António Ventura segue o nascimento, a vida e a morte dos Triângulos e das Lojas do Distrito, bem como a definição de expressões e conceitos de que se serve ao longo do livro.
Esta obra, que na sua estrutura apresenta uma clara vocação enciclopédica, fica portanto com um marco singular nos estudos maçónicos, à qual será obrigatório recorrer para se poder formular uma ideia correcta do modo como a Maçonaria Portuguesa foi criada e evoluiu.
A António Ventura, como mero leitor interessado neste tema e como praticante da Arte Real, quero agradecer este contributo para a compreensão da História da nossa Ordem, afinal para a compreensão das razões que ainda hoje levam tantos homens e mulheres a aderirem, sem cuidarem de riscos e calúnias, aos supremos valores da Tolerância e da Liberdade de Consciência e aos ideais da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade.
É que a Maçonaria, permitam-me que aqui o diga sem rodeios, citando de memória o Grão-Mestre António Reis é, por definição, uma escola de valores éticos ou, se quisermos citar um ritual, um espaço de convívio único “onde se ensina ao iniciado a arte de pensar e de descobrir por si próprio os elementos da sua convicção”. A instituição maçónica nunca será produtora de efeitos de fechamento dogmático. O seu sentido não é identificável senão em termos puramente subjectivos: cada Maçon construi-lo-á e daí retirará as devidas implicações práticas, em função da sua própria trajectória, em relação ao grupo (a Loja, a Obediência, a Ordem) no seio do qual organiza as suas experiências. (…)
Permitam-me que termine esta breve apresentação de A Maçonaria no Distrito de Portalegre sublinhando o imenso trabalho de pesquisa realizado por António Ventura: há obras que se arrogam de objectivos bastante mais vastos e cujos autores estão longe, muito longe até, de terem tido os cuidados e de desenvolverem os esforços de investigação que nesta se revelam de forma tão categórica.
Muito obrigado, portanto, ao Professor Doutor António Ventura pelo seu excepcional trabalho e a todos os presentes pela atenção que quiseram dispensar a estas considerações. Corro mesmo o risco de afirmar que são despiciendas perante a ambição, a qualidade e a importância do livro.
Salvato Telles de Menezes