É conhecido o exacto teor da queixa apresentada pelo senho Bienvenu ao juiz Jean-Luc Dehaene:
Denúncia contra a Moulinsart S.A., Bélgica
Eu, senhor MONDONDO MBUTU Bienvenu, cidadão congolês residente na Bélgica, apresento-me aqui hoje para registar uma queixa junto do Juiz de Instrução, em Bruxelas, depois da minha desorientação sobre a persistência da Moulinsart S.A. em não se decidir, de uma vez por todas, a interromper a publicação e a comercialização da banda desenhada "Tintin no Congo”, história racista e xenófoba.
Foram estas teses racistas que serviram de suporte à ideologia política para praticar discriminações sociais, segregações étnicas e para cometer abusos, inclusive actos de genocídio, "missão sagrada de civilização, entre 1885-1960”.
E isto, apesar das conclusões da Comissão Britânica para a Igualdade Racial (CRE), que avaliou o carácter racista da banda desenhada: "Sob qualquer ângulo, esta obra é deliberadamente racista"; em seguida o comunicado da CRE sublinhou: "Todas as livrarias devem reflectir concienciosamente antes de colocar à venda esta história em quadradrinhos"; por fim, um porta-voz da CRE declarou: "Este livro contém imagens e diálogos portadores de preconceitos racistas abomináveis, os indígenas selvagens congoleses parecem-se com macacos e falam como imbecis". A Moulinsart S.A. continua a publicar bandas desenhadas que têm um caráter muito particular. "O álbum está repleto de estereótipos da visão do Congo pelos europeus." Hergé afirmou que ele próprio havia concebido este álbum baseado em preconceitos que detinha e em ideologia colonialista, "missão sagrada de civilização", que custou cara à população congolesa entre 1885-1960: mais de vinte milhões de mortos congoleses merecem um respeito que eu, como seu descendente, não posso aceitar que alguém viole seja a que pretexto for.
É por isso que exijo uma indemnização de 1 € em atenção para com a minha honra e a da comunidade congolesa em geral.
Acho que a publicação e comercialização desta banda desenhada (Tintim no Congo) compromete significativamente o trabalho de valorização da cultura do belgo-congolesa, de tal modo que hoje em dia é cada vez mais difícil convencer as pessoas que vivem na Bélgica dos méritos de um esforço de aproximação dos diferentes povos e das suas culturas.
Senhor Juiz
Consideradas as razões acima invocadas;
Considerada a lei de 30 de Julho de 1981, dita lei Philippe Moureaux;
Peço-vos para decidirdes a culpa de Moulinsart S.A. pela publicação e comercialização da banda desenhada "Tintin no Congo”.
MBUTU MONDONDO Bienvenu
Parece óbvio que o senhor Bienvenu aguardaria uma reacção colectiva de grande apoio à sua iniciativa, dos meios congoleses e não só...
Para além da posição pública do MRAX, conhecido pelo seu habitual radicalismo, e de algumas opiniões, respeitáveis, de certos académicos, a verdade é que foram muito mais as reacções públicas adversas.
Algumas destas merecem ser realçadas, como, por exemplo e tal como lhe competia, a da parte acusada, a Sociedade Moulinsart. O advogado desta, Alain Berenboom, é escritor e foi secretário-geral da Liga Belga dos Direitos do Homem, além de administrador da Real Cinemateca da Bélgica. Ele declarou, a propósito do pleito:
“Onde está a urgência em proibir um álbum difundido desde há 80 anos? No meu entender, este processo contra Tintin no Congo não faz sentido. Se a justiça viesse a dar razão aos acusadores, então pacotes inteiros de literatura mundial estariam ameaçados, a começar pela Bíblia, que pode também ser lida como uma obra extremamente chocante. Se se exige que tudo o que foi escrito seja hoje politicamente correcto, será preciso interditar Dickens, Simenon, Jules Verne, Zola, Sade...
Tintin no Congo, ao lado de certos escritos antisemitas, anti-árabes ou pedófilos produzidos pelos autores que citei, não tem qualquer propósito racista. O álbum reflecte justamente a visão colonialista belga da época e da maneira como se represetava os Africanos nos anos 1920-1930. Que se leiam os Pieds Nickelés! Tintin no Congo não gerou monstros entre as crianças brancas, negras, amarelas ou vermelhas que o leram. É como se acusássemos Tom e Jerry de promover a violência quando atiram bigornas à cabeça um do outro!
Uma tira ou um aviso prévio são em si mesmos uma censura. Não existem advertências ao leitor nos livros do Marquês de Sade e as livrarias são livres de os vender aos menores de 16 anos. Os livros não são maços de cigarros!
Tudo me leva a pensar que este assunto é uma maneira de os acusadores se mediatizarem a si próprios, aproveitando a popularidade de Tintin.”
Outra posição, tão significativa como isenta, é a patenteada por Jozef Dewitte, director do Centro de Igualdade de Oportunidades e da Luta contra o Racismo, importante organização belga não-governamental. Num comunicado público, Jozep Dewitte, considerou a queixa do senhor Bienvenu contra a Moulinsart como “um caso de excesso do politicamente correcto.” E acrescenta, sobre o álbum: “Trata-se de uma obra de arte, criada por alguém que já morreu. (...) Seria bem melhor atacar as discriminações na contratação do emprego ou na autorização de residência.”
Guilherme de Oliveira Martins é um conhecido e respeitado político e intelectual português. O actual presidente do Tribunal de Contas é um confesso e esclarecido admirador de Hergé. No “site” do Centro Nacional de Cultura, ele publicou há alguns meses um notável artigo sobre Tintin, onde se antecipa, e responde a críticas “clássicas” como a que aqui tratamos. E escreveu, entre outras palavras, o seguinte:
“Pode dizer-se, simplificando, que há dez razões para o sucesso de Tintim. Antes de mais a ideia de aventura. Tintim representa, de facto, a emergência da aventura em estado puro - ora não temendo ir ao encontro das situações mais complicadas, ora garantindo estar à altura dos acontecimentos, agindo e vencendo. Além da aventura, mas fazendo parte desta, deve referir-se ainda a importância da viagem. O mundo é percorrido pelo jovem repórter, e Tintim é um viajante incansável, desde o início - o País dos Sovietes, a África (Congo) e a América. (...)
O sétimo motivo diz respeito à liberdade com sentido de justiça - como vários leitores têm referido (António Mega Ferreira tem insistido, e muito bem, neste tema). De facto, há um essencial sentido de autonomia e liberdade de espírito e de ideias no herói de Hergé, muito mais forte do que todas as tentativas de falar e insistir no suposto "colaboracionismo" do seu autor com os fascismos. Basta vermos o anti-racismo com Tchang ou lermos com atenção "O Ceptro de Otokar", observando que o vilão se chama Müsstler, para percebermos que, apesar de qualquer cedência circunstancial, há na personagem Tintim marcas de inconformismo, universalismo e cosmopolitismo. Para essa liberdade contribui ainda a ironia (oitavo motivo), sempre bem presente, capaz de fazer compreender melhor o mundo e os outros (Haddock, Girassol, Oliveira da Figueira, etc. etc.).”
António Martinó de Azevedo Coutinho