António Martinó de Azevedo Coutinho
O episódio da colisão do comboio congolês com o Ford T de Tintin é um paradigma das intencionais “confusões” interpretativas tecidas em torno do álbum. No caso do senhor Bienvenu, que apenas conhece -e de passagem!- a versão moderna da história, um melhor e mais integral conhecimento das implicações do caso poderia tê-lo facilmente conduzido a conclusões bem diversas.
Antes do mais, tal como aconteceu com outros símbolos económicos do Congo, como o marfim, a borracha ou os diamantes (também abordados ao longo do álbum), o caminho-de-ferro era um factor de fundamental importância para a região. O mesmo acontece, embora num diverso contexto, ainda hoje.
O explorador Henry Morton Stanley profetizara mesmo que “sem o caminho-de-ferro, o Congo não valerá um centavo”. E ele sabia bem o que dizia.
A construção das linhas de caminho-de-ferro congolesas é, portanto, da responsabilidade -e do interesse!- dos colonizadores.
Em conclusão, para o que respeita à narrativa em apreço, a colisão acontece entre um veículo automóvel “branco” e um comboio igualmente “branco”.
Quanto ao facto, insólito, de o acidente ter produzido o descarrilamento do veículo mais pesado, embora tenha perdido significado “racial”, existe uma explicação narrativa lógica. Os carris daquela via reduzida apresentam-se no estado lastimável patente nas imagens, enquanto o Ford, de aço, está firmemente neles encaixado, sendo embatido por um material circulante de fraca qualidade e baixo peso, também visíveis... Juntando a isto o efeito de suspense tão frequente na construção narrativa da banda desenhada o resultado afigura-se normal e lógico.
Passemos ao mais gravoso. No diálogo que se segue à colisão, Tintin ridiculariza a velha tchouk-tchouk dos negros, prometendo repará-la. Logo uma ocupante o censura, defendendo a locomotiva: - Velha tcouk-tchouk!... É uma linda locomotiva!... Portanto, paradoxalmente, um colonizado surge aqui louvando um sinal da colonização.
Segue-se a cena mais criticada, quando Tintin incita os negros ao trabalho e, perante a sua recusa, por declarada fadiga, apresenta-lhes o exemplo de Milou que, isolado, tenta empurrar a locomotiva tombada: - Ao trabalho, depressa! Vocês não têm vergonha por deixarem este cão trabalhar sozinho?... E Milou, um cão branco, espécie de alter-ego de Tintin, completa o incitamento: - Vamos, preguiçosos, toca a trabalhar!
Segundo o senhor Bienvenu, este “desabafo” constitui uma alusão carregada de racismo, provavelmente remetendo para os mais tenebrosos tempos coloniais, quando aos negros “preguiçosos” eram cruelmente decepadas as mãos...
No entanto, se tivesse lido a história com alguma atenção, ele ficaria certamente embaraçado com um episódio, anterior, em que o mesmo cão branco trepa para o dorso de um crocodilo, que confunde com um tronco de árvore, e espera impaciente pelo atrasado Tintin. E exclama: - Então! Onde é que se meteu esse preguiçoso?...
Cremos que, usando a mesma “lógica”, Milou tanto “agride” brancos como negros com o mesmíssimo epíteto. Como cúmulo do disparate, dificilmente se poderia insistir em argumentações deste tipo...
Dois pequenos pormenores restam para concluir a análise deste episódio, ainda que certamente desprezados nas acusações do senhor Bienvenu. Um refere-se ao regresso do pequeno Coco, que tinha prudentemente desaparecido, saltando do automóvel antes do embate. Com tudo calmo, reaparece e diz a Tintin: - Os negros já não estar zangados: Coco pode voltar... De notar que, na edição portuguesa do jornal Público, em Dezembro de 2003, o balão está grafado: - Os pretos já não estar zangados: Cocô pode voltar...
O pormenor final revela a única figura de negro que detém um cargo não subalterno, na administração congolesa dos tempos “tintinescos”: o de chefe da estação de caminho-de-ferro.
No confronto deste episódio com a sua versão original, podemos notar duas diferenças, embora pouco significativas:
• Um mais nitidamente degradado estado dos carris;
• Um distinto diálogo entre Tintin e uma das passageiras, onde não consta a “graça” daquele sobre a locomotiva, sendo substituídas as falas entre ambos. Tintin: - Silêncio!... Vamos repará-la, a vossa suja maquinazinha! Responde, indignada, a passageira: - Suja maquinazinha!!! E comenta, filosoficamente, Milou: - Sim, o teu sujo e pequeno truque...
Naturalmente, é possível analisar quase todas as acusações até agora conhecidas sobre o clima racista, colonialista e paternalista que se desprende das páginas do álbum. No entanto, talvez nem sempre seja possível explicá-las, justificá-las ou resolvê-las, como no presente caso.
Devemos ter sempre presente a sincera confissão de Hergé. Para além da temática congolesa ter ficado distante dos seus próprios projectos pessoais, a informação colhida e as influências recebidas conduziram-no, inevitavelmente, à criação hoje conhecida. As “revisões” nesta posteriormente praticadas obedeceram a intenções também conhecidas. Por isso, a crítica, quando justa, deve ser aceite; mas deve ser inteligente e adequada, porque só assim poderá produzir os seus justos efeitos.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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