ÀS TRÊS, FOI DE VEZ?
Notas de viagem – Brasília, 50 anos
No passado ano, em distintas oportunidades, dispus do ensejo de conhecer as três capitais do Brasil: Salvador da Baía, Rio de Janeiro e Brasília.Foram-no em sucessivas etapas da História do grande país irmão, as duas primeiras ainda na fase dos tempos que, unidos, partilhámos.
Salvador, tornada capital pelo governador Tomé de Sousa a partir de 1549, na época pioneira da colonização portuguesa, é uma cidade carregada dos vestígios e marcas da nossa presença. Depois, em 1763, nos tempos do Marquês de Pombal, este ordenou a transferência dos atributos de capital da imensa colónia para Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”, por onde ficaram os governantes, mesmo após a independência. Finalmente, já na era contemporânea, o presidente Juscelino Kubitschek concretizou uma das suas visões de modernidade, fazendo construir a cidade de Brasília na imensa vastidão do Planalto Central.
Agora, precisamente a 21 de Abril, comemoraram-se, com pompa e circunstância, os 50 anos de vida dessa nova, e jovem, capital do Brasil. Os meios de comunicação social trouxeram-nos, e a todo o Mundo, esses ecos festivos. Lembrei-me, por isso, dos dias por lá passados e, daí, senti o impulso de partilhar com os leitores do blog uma espécie de pessoal nota de viagem, ainda carregada das impressões contraditórias então colhidas.
Pelos finais da primeira metade do passado século, o urbanista Lúcio Costa partilhou com o arquitecto Óscar Niemeyer os planos e os desenhos da futura capital federal. Os seus curiosos e sintonizados testemunhos públicos revelaram sempre os principais objectivos de construção, a partir do zero, de uma cidade de tamanho limitado, sossegada e inovadora, com qualidade de vida quase ideal. A prevista integração entre os homens e a arquitectura permitiria, em teoria pura, o desenvolvimento dum comércio local sem atropelos, a ausência de industrialização e de todos os outros focos de poluição, largas avenidas sem semáforos e o mais tranquilo trânsito automóvel. Em suma, poucos prédios, pouca população, poucos automóveis e pouca burocracia. E, no entanto, os planos foram traçados com ambição: onde havia 81 deputados para encher, ao tempo, o Congresso, foi previsto o dobro dessa lotação. Mas hoje são 513 os parlamentares. O Palácio do Planalto foi concebido, com largueza de vistas, para 200 funcionários. Agora tem 700. E todos os exemplos são desta escala...
O resultado está à vista: para além das lindas vistas de bilhete-postal que todos conhecemos das páginas policromadas das revistas e por isso declarada Património da Humanidade, pela Unesco, em 1987, resultou uma cidade desequilibrada e macrocéfala, sem a projectada e desejada dimensão humana.
A desproporção entre as bem-intencionadas teorias e as desajustadas práticas obtidas é por demais evidente nos mais vulgares actos do quotidiano. Não existem placas indicativas e quase tudo é longe, demasiado longe e distante, mesmo para quem não tenha qualquer dificuldade de locomoção. Portanto, viver em Brasília sem dispor de automóvel próprio pode tornar-se uma dificuldade insuperável, dado o congestionamento dos percursos urbanos de autocarros e a flagrante ausência de uma rede central de metropolitano, que apenas liga os “dormitórios” satélites à periferia da grande cidade. Restam os táxis, abundantes e baratos.
Comunidade (ainda) sem passado, Brasília não dispõe de qualquer museu significativo, embora se aceite sem reservas a sua própria e elegante monumentalidade como uma mostra pública de bom gosto estético, ao ar livre. No entanto, as grandes peças urbanísticas e monumentais envelheceram sem qualquer manutenção adequada e o seu estado de degradação é bem visível se estivermos suficientemente próximos e atentos.
Os espaços privilegiados de convívio são, afinal como nas mais vulgares cidades, os gigantescos shoppings... E o que resta a Brasília? Se subirmos ao alto da sua Torre da TV, podemos perceber um pouco das suas contraditórias potencialidades: a arrojada elegância do seu traçado, imitando um avião, com os Eixos Monumental e Rodoviário (a fuselagem) e as Superquadras Norte e Sul (as asas), com o belo lago artificial Paranoá ao fundo, as abundantes zonas verdes e o “Centro do Poder” (no lugar da cabina), onde se instalaram os Palácios do Planalto, da Justiça, do Supremo Tribunal Federal, do Itamaraty e do Congresso Nacional (todos na Praça dos Três Poderes), mais a longuíssima Esplanada dos Ministérios, os Sectores das Embaixadas e, um pouco afastados, o Teatro Nacional e a Catedral. De cada lado, embora longe da Torre da TV, a Universidade Federal (uma das melhores do País) e o Cine Brasília, algo decrépito; nas costas (onde estaria o leme do avião), o Memorial JK, em honra do presidente-fundador.
Se acrescentarmos as áreas residenciais, os sectores dos hotéis de turismo, dos restaurantes e dos clubes desportivos, com o Estádio Mané Garrincha (onde a nossa selecção de futebol foi há meses humilhada), o autódromo internacional e o magnífico Parque da Cidade, dedicado à primeira-dama Sarah Kubischek, quase se esgota a lista. Se lhes juntarmos o Palácio da Alvorada (residência presidencial) e a fabulosa ponte JK talvez se complete a relação, relativamente modesta, dos pólos de atracção da moderna capital de um dos maiores, mais progressistas e mais desiguais países de hoje, “apenas” a 10.ª maior economia do Mundo.
Depois, vive-se freneticamente por todos aqueles espaços e é aqui que os estudiosos e críticos locais assentam as suas objecções: a nova capital abrasileirou-se muito depressa, incorporando os clássicos problemas do País, da violência à corrupção, do desemprego à discriminação, da competitividade desenfreada à especulação imobiliária...
Nas suas grandezas como nas suas misérias, Brasília será afinal o espelho fiel da orgulhosa Nação que, num curto espaço de tempo, foi capaz de a erguer do nada. Neste “pormenor” talvez esteja o segredo do seu lendário fascínio: os 140 164 habitantes da zona, em 1960, passaram a 2 606 885, em 2010; o seu PIB “per capita” cresceu, no mesmo período, de 484 para 15 844 unidades monetárias...
Salvador da Baía, Rio de Janeiro, Brasília - quem nos garante que, num futuro de crescente prosperidade para o Brasil, esta relação de capitais ficará por aqui?
António Martinó de Azevedo Coutinho
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