O exame da quarta classe é fascista?
Confesso que não segui com a devida atenção toda a polémica -creio que ainda em curso!- desencadeada pela recente comunicação do ministro Nuno Crato sobre a reintrodução do exame no final do primeiro ciclo do Ensino Básico.
Sorri ligeiramente ou ri mesmo, a bandeiras despregadas, perante algumas argumentações a propósito proferidas por alguns ilustres parlamentares. Como se sabe, não é preciso apresentar o diploma da quarta classe para se ser deputado. E talvez esteja aqui a explicação.
Por exemplo, afirmar que a putativa decisão ministerial nos remete para os sinistros tempos do Estado Novo (o termo “sinistros” é da minha inteira responsabilidade) significa ignorar, em absoluto, o historial do ensino público em Portugal, desprezando os tempos da 1.ª República e, mesmo, a época monárquica constitucional.
Declarar que a reintrodução de tal exame significa o regresso à escola elitista é outra cretinice, apenas suportada pela demagogia. Mas os deputados -e outros políticos em geral- , como também se sabe, não são obrigados a revelar o seu QI. A simples honestidade intelectual deveria constituir um sério travão ao disparate público. Mas entre nós não é assim.
Não estou a defender a reintrodução do exame da quarta classe. Para assumir convictamente tal posição teria de reflectir sobre o assunto e existem outras coisas bem mais importantes para fazer. Mas abomino a mediocridade e por isso não fico calado.
O que acho, em fácil dedução, é que não estará nesse exame, não estará aliás em nenhum exame, a solução dos problemas da nossa Escola pública. É exactamente o mesmo que se passa com a abominável e já quase clássica revelação anual dos chamados rankings das escolas, sujeitando-as a uma absurda classificação relativa. Feira de vaidades ou ghetto desprezível, cada uma das escolas aí colhe um louvor ou um labéu que roçam, por vezes, a obscenidade. Ainda se a “classificação” servisse para nela pesquisar as raízes do insucesso, e depois para as remediar, vá lá, para alguma coisa valeria a exposição pública das nossas pedagógicas misérias... Mas não, para isso não serve, nunca servirá.
Aqui há uns tempos encontrei, entre os meus velhos papéis acumulados numa vida, algumas colecções de pontos-modelos de Exames de Admissão aos Liceus (e cá volto eu aos “elitismos”!). As datas remetem-nos para o ano lectivo de 1945-46, precisamente as do meu próprio exame. Olho para aquele material com um misto de saudade e de alguma incredibildade...
As instruções são implacáveis, com regras precisas que eliminariam as inocentes criancinhas candidatas ao mínimo deslize. E, de facto, eliminavam. Não era impunemente que nos sujeitávamos à dureza das provas, que exigiam, à semelhança de qualquer Olimpíada, uma severa e cuidada preparação específica. Aquilo, de facto, era um pouco mais do que um simples exame da quarta classe. Não quero entrar aqui em pormenores, mas o banal folhear daqueles conjuntos de folhas impressas assusta um pouco. Creio mesmo, pessoalmente, que talvez eu não estivesse, agora, em perfeitas condições técnicas para entrar no Liceu...
Os sucessivos mapas mudos da prova de Geografia (25 minutos) obrigar-me-iam a saber a altitude da serra representada pelo número 6, o nome do rio identificado pelo número 2, a cidade alusiva ao número 3, a linha férrea numerada pelo 1... Passando às nossas colónias (era assim a sua desginação oficial), a mudez dos mapas assumia uma ainda maior implacabilidade: em Cabo Verde, como se chama a ilha número 5, qual era a povoação angolana representada pelo número 3 e que cor tinha, aí, o distrito onde corre o rio Cubango... Nem sequer me atrevo a reproduzir as questões relativas a Moçambique, Índia Portuguesa, Macau e Timor.
As dificuldades em História (20 minutos) seriam facilmente (!?) ultrapassadas desde que soubéssemos relacionar as 6 personagens da coluna da esquerda com a autoria de 6 dos actos mencionados na coluna da direita, porém com 8 hipóteses; ou completar 6 acontecimentos de uma outra coluna da esquerda com outros tantos nomes, entre os dez constantes da coluna à direita... Seria bastante conveniente saber-se qual destas batalhas tinha acontecido primeiro: Linhas de Elvas, Montijo ou Matapan... Ou qual destes factos se deu em último lugar: a conquista de Ceuta, as de Arzila e Tânger ou as de Ormuz, Goa e Malaca...
Neste breve resumo, deixo em claro a subjectivíssima prova de Redacção (45 minutos) e passo à de Língua Portuguesa (40 minutos). Entre outras exigências (36 no total), bastaria aqui classificar morfologicamente as palavras como, era, possível e viver ou ter a certeza de que mas é uma conjunção........, depois, um advérbio........., quem, um pronome...... e como, um advérbio....... Ou saber mudar as formas verbais tinha acontecido para a 3.ª pessoa do singular do futuro perfeito do conjuntivo e matá-lo-iam para a 1.ª pessoa do singular do pretérito perfeito definido...
Deixemos para trás, por pura piedade, o Ditado (20 minutos!?). Assusta daqui saber que mais de 5 erros eliminariam o paciente, e que cada simples falta (em acentos ou pontuação) valia um quarto de erro, para calcularmos o elevado risco inerente, mesmo sem achordo ortographico...
Sinceramente, quase não me atrevo a descrever a prova de Aritmética e Geometria (60 minutos). Reproduzo, sem comentários, apenas cinco dos 16 problemas aritméticos constantes da acusação, perdão!, do impresso:
5 – Um comerciante vendeu por 75$20 (era então o escudo a moeda oficial!) um objecto que estava marcado para 80$00. De quantos por cento fora o desconto feito?
7 – Um ciclista demorou 4h 17m 8s de Coimbra a Castelo Branco. A que horas partiu de Coimbra sabendo-se que chegou a Castelo Branco às 11h 5m 6s?
9 – Um escultor tomou a seu cargo um trabalho que, para o cumprir, tem de fazer diariamente 3/90 da obra. Porém, teve a ideia de falar a um ajudante que faz metade do trabalho dele. Quantos dias tem de vantagem, trabalhando juntos?
11 – Um lavrador colheu nas suas três propriedades 500 moios de trigo (um moio, 60 alqueires). Numa colheu 0,3, noutra 3/5 e na outra o restante. Quantos alqueires teve na terceira?
13 – No meu jardim há um lago, cujo fundo tem a forma dum octógono regular, que mede 2m de lado e 1,5m de apótema. Quantos decalitros de água contém, se está meio e tem de altura 60 centímetros?
Havia ainda a prova de Desenho (45 minutos), integrando uma esquadria onde o paciente inscrevia as formas de um objecto de uso comum. Normalmente com “barrigas” simétricas e uma asa para desequilibrar o conjunto...
A toda esta provação sobrevivi, sobrevivemos muitos em sucessivas gerações. Não ficámos por isso nem mais sábios nem mais imbecis... Nem a nossa inteligência resultou mais aguda nem a nossa memória mais embaraçada...
Não posso portanto defender, por uma mera questão de lógica, a reintrodução pura e simples dos velhos exames. Mas, atenção!, hoje mudaram substancialmente as regras do jogo. Os alunos, os professores, os programas (ai!, os programas mais os currículos...), os pais, os ministérios, a maneira de ver e sentir todo a vida social, cultural e política envolvente (o contexto), tudo mudou radicalmente.
Assim, parece pura leviandade afirmar, instantaneamente, que o exame de quarta classe deve ou não deve ser reintroduzido. A ministerial “provocação” merece ser analisada com rigor, nos seus prós e nos seus contras. Não foi nada disto aquilo a que todos assistimos, em deprimente exibição pública, quase tudo ficando resumido ao habitual conjunto de lugares comuns, onde sobraram banalidades e disparates, onde faltou uma honesta e imparcial reflexão.
Como vai acabar a polémica? Espero e desejo que o pretexto permita uma discussão inteligente, informada e conveniente aos superiores interesses da Educação.
Sei, no entanto, que é pedir muito.
António Martinó de Azevedo Coutinho