António Martinó de Azevedo Coutinho
REALidades Um
Miguel
Real é um pseudónimo. Quem se esconde por detrás deste? Será melhor sabê-lo,
por ele próprio, em entrevista recente ao jornal Açoriano Oriental: “O marido
da Filomena Oliveira, o pai do David e da Inês, o professor de Filosofia em
Sintra, o amigo de um grande número de sintrenses. Esta separação é vital para
a minha saúde mental. Sempre que o ‘Miguel Real’ me perturba, regresso ao ‘Luís
Martins’; sempre que sinto o ‘Luís Martins’ atarantado, desorientado, fujo para
o ‘Miguel Real’, que oferece uma caneta e uma folha de papel e que logo
aquieta.”
Miguel
Real dispõe de uma considerável obra publicada e de bastantes inéditos, alguns
acessíveis pela NET.
Conheço e
aprecio uma parte dos trabalhos do autor. A sua modernidade deslumbra e
inquieta, assim como impressiona a vasta amplidão, quase renascentista, das
temáticas abordadas. Por exemplo, é da sua autoria um notável estudo sobre uma
das facetas mais ignoradas de José Régio, a de crítico literário. Um dia
destes, pelo seu manifesto interesse, talvez valha a pena aqui divulgar tal
trabalho.
Miguel Real
publicou recentemente duas obras, Nova
Teoria do Mal (edição Dom Quixote,
2012) e A Vocação Histórica de Portugal
(edição Esfera do Caos, 2012), pelo
que foi entrevistado a este propósito pela jornalista Catarina Pires. O país
tomou conhecimento das declarações do filósofo, professor e escritor através do
Notícias Magazine n.º 1039, relativo
a 22 de Abril. Não abordo, por agora, o conteúdo das obras citadas, ficando
pela entrevista, donde retiro algumas passagens por si mesmas suficientemente
reveladoras da dura e implacável análise política de Miguel Real.
“A sensação com que se fica (...) é que nas últimas décadas vão para o poder
os piores de nós. Dá impressão de que houve uma demissão das elites. Certamente
os melhores emigraram. Portugal é um país pequeno e alguém que seja ousado e
ambicioso tem sempre em mira sair daqui. A verdade é que depois dos pais
fundadores da democracia portuguesa -Cunhal, Sá Carneiro, Soares, Freitas do
Amaral- parece que veio uma leva de políticos de carácter tecnocrático que não
são os melhores de nós, pelo contrário, são os mais oportunistas, aqueles que
vêem a frincha da porta aberta e entram logo à espera da grande oportunidade. A
elite reflecte o povo, mas não tenho a certeza de que hoje isso seja assim.”
Isto, que o
autor declara logo nos inícios da entrevista, deixa desde logo antever o seu
sentido crítico perante a qualidade da gente que nos tem governado. Depois de
gerações inteiras em que o sucesso garantido passava pelos seminários, dá agora
bem mais à conta ir para político do que para padre, com a vantagem de nem ser
preciso estudar alguns anos. Modernamente, como lema ou projecto de vida, para
muitos, basta o pontapé para a frente e fé no Partido...
“No século XIX, Portugal, em termos de
evolução cultural, industrial e até política, estava à frente da Escandinávia.
Em finais do século XX, já estava muito atrás. Aconteceu qualquer coisa. E o
que foi? Foram as elites portuguesas -o Estado Novo esteve cinquenta anos no poder-,
influenciadas pela Igreja Católica, que nos bloquearam, com a história da
pobreza e do pudor como virtudes. Quando entrámos na Europa estávamos a cumprir
um sonho com duzentos anos, do marquês de Pombal, que era fazer de Portugal um
país medianamente europeu.” (...) “O
sonho da geração europeia era fazer que os duzentos anos pós-Pombal, que vinham
em contínuos desequilíbrios, parassem. Passámos por sucessivas revoluções: a de
1820, depois a guerra civil, depois a Regeneração, em 1850, depois o Ultimatum,
em 1890, dramático para o país em termos de humilhação, depois a Instauração da
República, em 1910, depois o Estado Novo, em 1926, depois o 25 de Abril, em
1974. Mas quando é que acaba isto? Andamos há duzentos anos em revoluções e em
cada uma vamos ser os melhores do mundo. Claro que nunca somos, mas a entrada
na Europa, em 1986, gerou a esperança de que Portugal criasse a grande ausente
da história do nosso país: a classe média. Por que somos tão desequilibrados?
Por que andamos sempre entre o êxtase e a depressão? Porque não existe uma
classe média maioritária, liberal nos costumes e espiritualmente humanista.”
Miguel Real põe
assim o dedo numa certa ferida, hoje quase cicatriz. Para que nos vale a Europa
ou, mais propriamente, esta “versão” de Europa? Afinal, do imbecil
“orgulhosamente sós” de um passado sem saudades, teremos chegado ao
“lamentavelmente mal acompanhados”?
Cá por dentro,
de forma implacável, por que tem vindo a ser destruída a classe média, clássico
fiel de uma balança agora perigosamente desequilibrada?
Sem claras
respostas à vista, será melhor continuar a análise destas REALidades...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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