CEGUEIRA VOLUNTÁRIA
Repetitivo e desfasado da realidade é desta forma que se pode caracterizar o discurso do presidente da Câmara Municipal de Portalegre, esta tarde, na sessão solene comemorativa dos 461 anos da elevação de Portalegre a cidade.
Num concelho onde mais de 900 famílias vivem em situação de pobreza, segundo a Cáritas Diocesana, e num distrito com cerca de 10 mil desempregados, Mata Cáceres teve a ousadia de voltar a desafiar os portalegrenses a “assumir o controlo pelos destinos de Portalegre”.
O investimento privado em Portugal e muito particularmente no distrito de Portalegre desceu a níveis nunca vistos nos últimos anos, mas o autarca eleito pelo PSD continua a fazer crer aos portalegrenses que o concelho está à beira de um novo ciclo de expectativas.
Repetindo o que já tinha dito em outras ocasiões, Mata Cáceres, reafirmou que “estão em perspectiva investimentos de natureza privada de importância transcendente para o concelho de Portalegre”.
Transcrevi atrás, rigorosamente, o texto patente na página da Rádio Portalegre disponível na Internet, a partir do dia 23 de Maio de 2011. Embora devidamente assinado, este bloco dedicado ao discurso oficial que marcou a sessão solene comemorativa dos 461 anos da elevação de Portalegre a Cidade e dos 500 anos do respectivo Foral Manuelino oscila entre o objectividade dum noticiário e a subjectividade dum comentário. Nem sequer, aqui e agora, me atrevo a lançar uma proposta de discussão da óbvia fronteira ética que separa -ou devia separar- a natureza e a oportunidade de ambos os textos: a notícia e a opinião.
Tenho como rigorosa verdade a classificação aplicada ao discurso. Já todos os portalegrenses ouviram, mil vezes repetidas, estas palavras sempre arrumadas em frases que se tornaram ocas, demagógicas, desprovidas de qualquer sentido autêntico. Nem sequer dispomos da garantia de que o seu próprio autor nelas acredite. O que todos podemos viver, no quotidiano duma cidade que quase perdeu sentido e que não dispõe de qualquer argumento válido para justificar confiança no seu futuro, é o resultado lógico duma governação débil, impotente, contraditória, decepcionante, sem qualquer linha orientadora visível, flutuando ao sabor do acaso, desperdiçando oportunidades e mostrando-se incapaz de qualquer intervenção decidida, do tal murro na mesa que, em tempo útil, travasse e invertesse a queda para o abismo...
Já todos conhecemos de cor e salteado as mesmas fantasiosas e vagas promessas de investimentos virtuais em que gostaríamos de acreditar, já todos antecipadamente abominamos os improvisos, construções gramaticais carregadas dos mesmos chavões, sempre iguais, ditas num característico tom monocórdico, esvaziadas de qualquer sentido utilitário. Entre nós, o virtual tomou, desde há muito, o lugar da realidade e a fantasia mais pessimista parece ter-se apossado do nosso melancólico destino.
Mas a crise, a tal que se tornou alibi e desculpa até nos mais altos níveis da nossa mediocridade política nacional, não explica nem desculpa tudo.
A nossa condição de cidade, agora festejada, está claramente posta em causa. Os documentos reais que, há 500 e 461 anos, elevaram a cotação portalegrense no concerto das terras nossas pares e, muito mais recentemente, a nossa promoção a capital de distrito, tudo isto parece agora irreal, imerecido, injustificado...
Fomos perdendo, ao longo das últimas décadas, uma boa parcela do natural orgulho que qualquer cidadão deve manter pela sua terra natal. E este quebra -cívica, moral e intelectual- acentuou-se dramaticamente desde há uma dezena de anos. Não se trata, infelizmente, dum mero sentimento pessoal, privado; assumem-no crescentemente, no colectivo, grupos de cidadãos que ainda procuram manter alguma lucidez, autónoma, misturada com a mais legítima indignação. E é imperioso que tais testemunhos assumam a clareza de uma firme denúncia pública. Neste capítulo, apesar das reservas que atrás deixei expressas, a Rádio Portalegre prestou um significativo serviço público.
Numa recente entrevista concedida ao jornal Alto Alentejo, em discurso directo, o senhor presidente da autarquia portalegrense respondeu a “uma das fortes críticas feita à câmara: a falta de manutenção e limpeza da cidade”. Invocando os parabéns recebidos há pouco tempo da parte do presidente do Turismo de Portugal, Luís Patrão, pela forma (estado de limpeza) em que este encontrara a cidade, o responsável máximo pela urbe perdeu-se depois no seu próprio e habitual discurso, nada respondendo, no concreto, a essa justa e pertinente crítica. A verdade, patente a todos os que calcorreamos diariamente as ruas de Portalegre, é que a cidade está abandalhada e imunda. Como nunca.
Nessa entrevista, o presidente foi confrontado com uma outra questão pertinente, a de como será recordado pelos portalegrenses no dia em que abandonar o cargo. Como resposta, surgiu a lógica afirmação de que, mais importante do que a sua própria opinião pessoal, conta o que as (outras) pessoas pensam. E acha que ficará indissociavelmente ligado a um conjunto de coisas que se fizeram. É verdade, mas monsieur de La Palice não diria melhor.
Para mim, e seguramente para algumas outras pessoas, este presidente ficará também ligado ao que não (se) fez e, também, ao que (se) fez mal, talvez mesmo muito mal. É o caso, também indissociável e infelizmente irrepetível, do Programa Polis. Foi uma oportunidade ingloriamente perdida que deixou mais feias cicatrizes do que bem sucedidas plásticas...
Como portalegrense, lamento muito deixar convictamente, aqui e agora, este testemunho. E nem sequer o sinto ou assumo como um acto de coragem cívica, pois é muito mais um lamento de dor. Insuportável.
É que, embora por pouco tempo, fui um dos que acreditaram em que Portalegre, sob o impulso decidido, enérgico e inteligente dum homem com provas dadas, poderia finalmente seguir um inequívoco rumo de afirmação e de progresso. Porém, quase tudo aconteceu ao contrário: o passado foi escarnecido, o presente desperdiçado, o futuro hipotecado...
Portalegre está hoje como está, embora ainda haja quem não veja, com desapaixonada isenção, o estado a que chegámos.
Até quando?
António Martinó de Azevedo Coutinho