Em
documento da Biblioteca Pública de Évora anteriormente apresentado (*) registava-se
a entrega do corpo de D. Sebastião, trazido de Alcácer-Quibir por intercessão
conjunta de Filipe II de Espanha e do cardeal D. Henrique, às autoridades portuguesas
de Ceuta, cidade onde viria a ter a sua segunda sepultura na capela-mor do mosteiro
da Trindade. Durante quatro anos aí repousaram os despojos reais até que, em 1582,
por ordem do mesmo Filipe II, então já primeiro em Portugal, os restos mortais do
malogrado soberano foram daí trazidos para Faro de onde seguiram para a sua
última morada, no mosteiro dos Jerónimos.
No
documento que a seguir se transcreve, extraído de volume manuscrito existente
na coleção de reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, sob a cota ALC.
308, disponível online em http://purl.pt/26880/3/#/0 são
descritas a passagem do préstito pela cidade e as cerimónias fúnebres que aí
tiveram lugar nos dias 9 e 10 de dezembro de 1582, registadas pela pena de um
dos intervenientes diretos, o cónego Jerónimo de Almeida.
Fernando
Correia Pina
Entrada do corpo del Rei D. Sebastião
na cidade de
Évora no ano de 1582 e
do que nisso se fez pelo Prelado e Cabido
Quinta-feira
à tarde nove dias do mês de Dezembro de 1582 entrou nesta cidade de Évora
funeralmente e com grande piedade de todos o corpo que se dizia ser de el rei
de Portugal D. Sebastião primeiro deste nome que santa glória tem o qual se
perdeu em África com todo seu exército português véspera de Nossa Senhora das
neves 5 dias de Agosto de 1578, o qual corpo vinha do Reino do Algarve trazido
da cidade de Faro na qual está a sé daquele bispado e aonde o haviam levado da
cidade de Ceuta por ordem e mandado de el rei Filipe nosso senhor, tio do dito
rei D. Sebastião a quem sucedeu neste reino de Portugal e todos seus senhorios
o qual o mandou recolher e trazer do campo de Alcácer Quibir em África aonde
foi a batalha e força da guerra em que se perdeu à dita cidade de Ceuta aonde
estava depositado na sé dela, com a pompa e veneração devida até que o bispo de
Ceuta que então era D. Manuel Seabra, com mais gente e companhia ordenada por
Sua Majestade partiu com ele por mar até à cidade de Faro do reino do Algarve
aonde desembarcou e ali por mandado e regimento de sua majestade se recolheu na
sé de Faro do dito bispado do Algarve pelo bispo D. Afonso de Castelo Branco
que então era e com o dito bispo de Ceuta que o vinha acompanhando com procissão
solene do seu cabido e clerezia e mais gente da cidade.
Na dita sé
de faro esteve até que sua majestade el rei Filipe que então estava em Lisboa com
sua corte mandou recado para o trazerem dali e enviou fidalgos de sua casa e
havia alguns que haviam sido privados e oficiais da casa do dito rei D.
Sebastião para virem acompanhando seu corpo da dita cidade de Faro até Lisboa
aonde em o mosteiro de Belém com os corpos dos mais reis passados príncipes e
vassalos havia de ter sua sepultura.
Partiu o corpo
de dito rei D. Sebastião da dita cidade de Faro do reino do Algarve por terra
direito à cidade de Beja acompanhado dos fidalgos como dito é e vinha com ele o
bispo do Algarve que trazia consigo o deão da sua sé D. Diogo Lopes e o
arcediago dela o doutor Matias da Fonseca e o chantre e um cónego e o dito
bispo de Ceuta era o que trazia o asumpo do corpo de el rei como o primeiro
entregue dele.
Vinha este
corpo metido em uma tumba pequena, cerrada e coberta toda por fora de tela de
ouro com sua cravação miúda dourada coberta com um pano grande da mesma tela e com
uma cruz pelo meio que rodeava o pano todo doutra tela mais rica de alcachofras
e torçais de ouro ao redor.
Vinha esta
tumba pelo caminho metida em uma caixa de andas em duas mulas formosas guarnecidas
do mesmo jaez da tumba e ao redor delas doze tochas acesas as quais traziam
doze moços da câmara de el rei, e uma cruz dourada grande alevantada diante das
ossadas? A qual trazia um capelão de el rei e outros dois capelães com dois
círios pequenos metidos em cada uma sua lanterna de prata grandes de uma parte
e outra da cruz, a cavalo, e vinham oito fidalgos da casa de el rei
acompanhando este corpo e ato. Vinham trinta capelães de sua majestade e todo
[o] serviço de sua capela assim de ornamentos como de prata e muitos moços de
capela e reposteiros que serviam no que convinha.
Com este
acompanhamento vinha o licenciado Belchior de Amaral corregedor da corte com
vara e alçada e trazia meirinho consigo e almotacé-mor de caminho para fazer prestes
em todo lugar o necessário.
Chegados que
foram a esta cidade de Évora ao cruzeiro grande da porta de São Brás extramuros
no rossio dela no sobredito dia de 9 de Dezembro logo dali mandaram recado ao
senhor arcebispo deste arcebispado de Évora D. Teotónio de Bragança tio do duque
D. João de Bragança que ora é que estavam esperando aí para sua senhoria o haver
de ir receber em pontifical com o seu cabido todo e clerezia e religiões da
cidade como sua majestade lhe tinha mandado dar ordem e regimento ao dito
arcebispo em Lisboa onde ao tal tempo andava em negócio com sua majestade o
qual o mandou vir a esta cidade de Évora a esperar este corpo de el rei D.
Sebastião para lhe fazer o recebimento na cidade.
Tangia-se a
véspera na sé quando este recado veio da uma hora para as duas e logo sua senhoria
mandou que se destangesse e recado a todos os cónegos que fossem presentes na
sé para que logo se começasse a dizer a véspera e completa, e se disseram
entoadas e acabadas fossem logo em procissão à porta da cidade e assim se fez
com toda brevidade.
Acabada a
completa antes das três horas sendo presente na sé todo o cabido e beneficiados
dela com toda a clerezia e as religiões da cidade que puderam ir o senhor arcebispo
se revestiu de amito alva estola cordão cruz peitoral capa de tela de ouro e mitra
branca simples dentro na capela-mor da sé e daí com mitra na cabeça
assistindolhe de uma parte com sobrepelizes sem capa Simão Mascarenhas, deão e
cónego na mesma sé e da outra o licenciado Diogo Nunes Figueira tesoureiro-mor
na dita sé começou a procissão a proceder e andar pela Rua da Selaria abaixo
até à porta da cidade do Rossio de São Brás aonde estava o corpo de el-rei, e
foram nela as confrarias e irmandades e religiões seguintes
Diante de
todos no princípio da procissão ia a irmandade e confraria de Nossa Senhora dos
Prazeres situada na igreja de Santo Antão da praça de Évora com todos os irmãos
dela e cada um com sua vela branca acesa e a Irmandade da Misericórdia logo
após eles com suas velas nas mãos, e logo a religião e ordem de S. Francisco e
a de S. Domingos, e no couce junto da clerezia os padres de S. João da ordem de
Santo Elói e logo todas as mais cruzes das freguesias da cidade com todos os clérigos
priores e beneficiados dela.
Chegados que
foram todos à Porta do Rossio, o senhor arcebispo assim como ia com seu cabido
se foi pôr à porta da cidade da parte de fora do campo e aí estiveram esperando
um pouco enquanto o corpo de el-rei se tirou das andas em que vinha nas azêmolas
que até então o tiveram sempre nelas e deposto delas consertaram a tumba que vinha.
E logo os
oito fidalgos que vinham com ele a tomaram nos braços pelos varais postiços que
nelas se punham e por toalhas em que pegavam no meio e começaram a andar para dentro
da cidade e à porta dela ficando a tumba no couce da procissão em meio do cabido
e da capela de el-rei e seis tochas acesas de cada parte a que as traziam moços
da câmara em corpo com suas espadas na cinta com a cruz da capela de el-rei
levantada a qual trazia um capelão seu e dois outros com círios postos em
acender nas [lanternas] cada um de sua parte da cruz começaram logo dois
capelães de el-rei de boas vozes acantar Subvenit Sancti Dei, Occurrite
Angeli com o salmo de Miserere Mei Deus verso e verso como se
costuma nos enterramentos e respondia o cabido e a clerezia toda e as religiões.
O senhor
arcebispo com seus assistentes tomou o seu lugar detrás da tumba e entre ela e ele
ia a sua cruz que levava o tesoureiro da sua capela e atrás dele vinham os dois
bispos o de Ceuta à sua parte direita e o do Algarve à esquerda com suas lobas
curtas pretas sobre os roxetes como vinham pelo caminho e logo os governadores todos
da cidade de Évora e câmara dela e justiças com capuzes de dó compridos e suas
varas vermelhas na mão de cada um: juiz de fora vereadores procurador tesoureiro
escrivão da câmara e os mais segundo seu costume e ordem.
Da outra
parte da cidade vinham todos os fidalgos que havia nela e mais pessoas nobres que
foram a este acompanhamento.
Nesta
entrada e procissão todos os capelães de el-rei estiveram à mão direita assim
por hóspedes, como por costume em que esta sé e cabido dela está de ir um ano
nas procissões gerais ou votivas em que sua majestade for estando nesta cidade
e a sua capela uma vez à mão direita e outra vez à parte esquerda e porque
também havia lembrança no cabido que a derradeira procissão que se fez nesta
cidade em que foi o mesmo rei D. Sebastião o cabido fora à esquerda.
A cruz da sé
foi igual com a cruz da capela de el-rei e teve nisto igualdade o lugar da parte
esquerda como o cabido.
Veio a
procissão assim procedendo e andando pelas mesmas ruas do Paço Praça e da Selaria
por onde fora até à sé e os fidalgos que levavam a tumba muitas vezes descansavam
com ela porque cansava bem e a punham em um banquinho que dois reposteiros de
el-rei traziam que servia de aquilo somente coberto com um pano de veludo
carmesim.
Chegados todos
à sé a tumba do corpo de el-rei se pôs assim como vinha em um faldistório alto
que já estava prestes no meio da capela maior pegado com os degraus do altar
maior cercada das tochas acesas e logo a cobriram com um pano grande de brocado
que cobria todo o faldistório e tumba.
Depois disto
feito um capelão de el-rei veio no meio da entrada da capela-mor começou o
responso Memento Mei Deus cantado o qual disse muito bem, e acabado o
senhor arcebispo revestido como vinha Pater Noster botando água benta
sobre a tumba e houve incenso e incensou a tumba três vezes primeiro ao pé dela
e depois toda à roda e disse a oração Inclina Domine Aurem Tuam e com
ela acabou o dito requiesquat in pace se foi despir dos ornamentos e
cada um se foi para casa.
Para os senhores
dois bispos que vinham mandou o senhor arcebispo pôr um estrado e cortina nas
costas dele armadas de grades de altar-mor no primeiro tabuleiro deles à parte
da epístola com duas cadeiras grandes iguais juntas e ali se sentaram os
bispos.
Quando a tumba
do corpo de el-rei chegou à sé estava na mesma capela maior outra tumba pequena
forrada toda de veludo roxo com cravação dourada com os ossos ou terra deles
dos infantes que estavam enterrados em Nossa Senhora do Espinheiro que diziam
ser duas filhas de el-rei D. Manuel e dois filhos de el-rei D. João o 3º todos meninos,
e um destes filhos de el-rei D. João era já príncipe os quais sua majestade mandou
que se trouxessem à sé para depois da vinda do corpo de el-rei juntamente se meterem
na sua tumba e assim irem todos para o lugar de suas sepulturas a Belém.
Esta tumba
com os ossos dos ditos infantes com a mesma guarnição de veludo e pano grande
que a cobria se havia trazido ali ao outro dia em umas andas de el-rei e o
senhor arcebispo por ordem que sua majestade lhe tinha dado foi ao mosteiro de
Nossa Senhora do Espinheiro estar ao abrir das sepulturas e tirar dos ossos e
com muita clerezia da cidade e com o prior e muitos padres do dito mosteiro os
vieram acompanhar até à sé.
Chegados aos
degraus do tabuleiro da sé da porta principal dela se tirou a tumba das andas e
o cabido que estava já em procissão esperando ali os acompanhou até à capela maior
levando-se a tumba pelas dignidades e cónegos mais antigos à capela maior onde se
pôs em um faldistório alto que para isso ao meio dela estava posto coberto todo
de veludo preto com dez tochas ardendo cinco de cada parte.
O senhor
arcebispo lhe disse uma oração como está no batistério que é dos meninos pequenos
defuntos assim como vinha sem tomar ornamento algum.
Ao dia
seguinte que foi sexta-feira X dias de Dezembro depois de ditas as horas no
coro até à noa por ser advento ao tempo da missa do dia se disse missa de
requiem pela alma de el-rei que se tinha cantada muito solene oficiada pelos
cantores da sé à qual esteve o senhor arcebispo e cabido e bispos e muita gente
da cidade a qual disse por ordem do cabido o cónego Jerónimo de Almeida e dois
beneficiados da sé à epístola e evangelho e no fim houve responso e oração o
qual responso disse D. Fernando Martins Mascarenhas cónego da dita sé bispo que
era e digníssimo do bispado e reino do Algarve.
Ao sábado
seguinte pela manhã XI do dito mês depois das oito horas dadas e dita a prima
no coro se começou outra missa cantada solene que também disse cantada o mesmo
cónego e oficiada pelos cantores da sé, e dita ela ao responso Libera Me
Domine o qual se disse a vozes por quatro cantores da sé, o senhor
arcebispo revestido com capa e mitra depois de deitar água benta e de incensar
a tumba disse a oração e estando já as religiões e clerezia todos juntos na sé
e em ordem de procissão com o cabido juntamente, se tornou a levar a tumba com
o corpo de el-rei pela mesma ordem com que veio o dia de antes pelos mesmos
fidalgos que o trouxeram e foram assim até à porta da Rua de Alconchel que é o
caminho direito para Lisboa, e o chantre da sé com outro beneficiado que também
o ajudava iam cantando ambos os versos do salmo Miserere Mei Deus, com
o Subvenit Sancti Dei como se fez quando se trouxe à sé e neste acompanhamento
e procissão teve o cabido a mão direita e os capelães de el Rei a esquerda e o
mesmo teve a cruz da sé com a de el-rei.
Chegados à
Porta de Alconchel, estavam as azêmolas das andas com que havia de ir a tumba
preste e logo ali sem haver responso nem oração alguma pelo prelado que ia revestido
a meteram nelas os bispos e os fidalgos e capelães de el-rei que com ela vinham
se puseram a cavalo e assim os que traziam as tochas acesas e começaram a caminhar
com sua cruz diante e o senhor arcebispo se recolheu em uma casa que está entre
as portas da cidade e ali se despiu dos ornamentos que levava depois se foi
para casa e todos os mais que na procissão foram fizeram o mesmo.
Havia 13
anos e um mês e meio pouca mais ou menos que este mesmo rei D. Sebastião que
Deus tem havia entrado por esta mesma porta da cidade a primeira vez que nela
foi recebido com bem diferente recebimento de alegria e prazer de todo seu povo
(et sic transit gloria mundi).
Eu Jerónimo de Almeida (desmerecido cónego) meio prebendado na dita sé e que
muitos anos a rreo? Fui secretário da mesa dos senhores do cabido dela a todas
estas coisas fui presente e vi passar e as escrevi direitamente só para minha
lembrança e para que quem o lesse folgasse de saber o passado e em tudo
louvasse ao Senhor por todas suas obras.