Já foram aqui abordadas, em devido tempo, as fontes habitualmente citadas (por diversos e autorizados biógrafos) como aquelas onde Hergé terá recolhido a informação bastante para resolver com o êxito possível a “encomenda congolesa” do padre Wallez. Recordando, essas principais fontes terão sido um romance em voga -Os silêncios do Coronel Bramble, de André Maurois- e o vizinho Museu Real da África Central, onde pairava ainda a sombra de Leopoldo II.
Surgiu recentemente uma outra pista, muito prometedora e bastante credível, que envolve e justifica a “inspiração” de Hergé. Apresentou-a o belga Bernard Spee, a 19 de Junho de 2009, sob o título Why and How to read Tintin in the Congo?, no 6.º Congresso Bienal da International Bande Dessinée Society (IBDS) em Londres, com o apoio da Communauté Française de Belgique (WBI).
Pelo rigor da comunicação e pela importância de que esta se reveste como contexto duma boa parte das acusações lançadas contra Tintin au Congo, não hesitamos em aqui transcrever o essencial deste original e oportuno estudo.
O seu autor cita e descreve uma obra da época, praticamente desconhecida, como aquela onde Hergé assentou inequivoca e significativamente o polémico trabalho. Trata-se de Un an au Congo Belge, edição da Librairie Albert Dewit (Bruxelas) em 1925, da autoria de “Chalux”, pseudónimo de um jornalista belga, o marquês Roger de Chateleux. Por óbvias razões, são aqui transcritas as linhas finais da obra, espécie de esclarecedora dedicatória: “Que possa este simples caderno de viagem servir um pouco a grande causa colonial, iniciada pelo génio de Leopoldo II, e incitar a Bélgica a convencer os melhores elementos entre a juventude belga a seguir uma carreira útil a si própria e à Mãe Pátria”.
O livro, nas suas 725 páginas ilustradas com 168 reproduções fotográficas mais uma carta do Congo, contém uma impressionante quantidade de pormenores a seguir tornados comuns em Tintin au Congo, publicado apenas cinco anos depois.
Sem esgotar a lista, e apenas quanto a gravuras, citam-se as mais relevantes “coincidências”:
• Foto do paquete Thysville, reproduzido no álbum;
• Foto de um missionário, de densa barba e vestes brancas, com capacete, em tudo semelhante ao Superior da Missão;
• Foto de viaturas similares ao Ford T;
• Foto de um tambor tam-tam de forma particular, rigorosamente igual ao constante da penúltima página da edição p/b de 1930/31;
• Foto de um caçador branco, o próprio autor, com capacete colonial e o seu fiel “Vendredi” negro, fazendo lembrar Tintin e Coco;
• Foto de um comboio congolês, em via reduzida, não muito diverso do reproduzido no álbum;
• Foto de soldados negros, uniformizados tal e qual como os de Hergé.
Quanto ao texto propriamente dito, muitas são as informações relevantes e particulares que surgem, depois, interpretadas no álbum. Eis apenas algumas:
• O facto de, em certos locais do rio Zaire (ou Congo), a maré influenciar a subida das águas, tal como na cena onde Tom coloca Tintin ao alcance dos crocodilos;
• O pormenor de os crocodilos, nadando no rio, poderem ser tomados por troncos de árvore, ilusão de óptica que quase vitima Milou;
• A importância estratégica do caminho de ferro congolês, justificativa da empenhada intervenção de Tintin a quando do acidente;
• O comércio dos diamantes, então controlado pelos americanos, episódio depois ficcionado com a intervenção dos sicários de Al Capone;
• A prática imitativa dos Negros, ao usar fragmentos ou restos de vestuário, como ostensivo índice civilizacional, cena-tipo de que Hergé vai abusar...;
• Diversas referências detalhadas sobre os Aniotas, os pigmeus, a vida nas missões e os pequenos e grandes reis indígenas, material de que a história se serve com frequência;
• Relatos sobre salomónicas decisões de missionários, quer católicos quer protestantes, metáfora que Hergé utilizará em diversas situações, nomeadamente no caso da divisão de um chapéu de palha disputado por dois Negros.
O conhecimento desta lúcida e quase “revolucionária” investigação de Bernard Spee traz uma nova luz ao caso, confirmando, em absoluto, as declarações de Georges Remi. Apenas se pode lamentar que este não tenha sido mais explícito e mais objectivo nas suas confissões, sobre a acrítica ingenuidade em que vivia na época e sobre a forma como recebia as influências do seu meio e as dos nefastos preconceitos em voga na Bélgica colonialista dos anos 30. Como aconteceria, aliás, se por acaso vivesse em Portugal.
Porém, ao esconder as indiscutíveis semelhanças de Tintin au Congo com Un an au Congo Belge, recearia ele alguma acusação de plagiato? Ou teria preferido ocultar as discutíveis motivações e inspirações ali colhidas?
Ninguém poderá hoje confirmar nem desmentir estes pressentimentos, mas não poderemos ignorar doravante este dado fundamental.
António Martinó da Azevedo Coutinho