Humberto Nuno de Oliveira
Afonso V... longe das invenções
Alheio às polémicas que nestes anos de desacerto socialista vêm marcando a sua direcção, o Museu Nacional de Arte Antiga apresenta-nos uma notável exposição, patente até 12 de Setembro, embora com alguma reserva minha quanto ao título (muito politicamente correcto, como convém...) “A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana”, como se a glória africana do Rei D. Afonso V, reconhecida por toda a Europa do seu tempo, carecesse de ser "inventada".
É a primeira vez, que as quatro Tapeçarias encomendadas por D. Afonso V em Tournai (na Flandres), quatro enormes panos de armar com quatro metros de altura por dez de largura, são expostas entre nós. Ocasião, pois, que nenhum Português cioso do seu passado deve perder. Numa época em que tal era inédito, foi este o modo pelo qual, D. Afonso V entendeu legar para a posteridade uma imagem dos seus feitos de 1471 em Arzila e Tânger.
Ainda hoje não se sabe com pormenor como é que os quatro panos saíram do país, existindo distintas teorias para tal facto. Produzidas nas oficinas flamengas no último quartel do século XV, terão chegado provavelmente apenas já no reinado de D. João II, e em 1532, poucas décadas depois de terem sido feitas, aparecem em Espanha, no inventário dos bens dos duques do Infantado". Por estes foram cedidas posteriormente à Colegiada de Pastrana (de onde lhes advém o nome), onde permaneceram desde então. Notáveis peças, esquecidas pelo mundo até que, no início do século XX, os historiadores José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos as "encontraram" naquela localidade de Castela-a-Velha.
Críticas sempre possíveis aparte trata-se absolutamente de uma deslumbrante exposição que apresenta esse notável património nacional que, infelizmente, voltará a Espanha terminada a exposição. Ante a magnificência do que está exposto (e só isso bastaria), importa alinhavar algumas considerações menos positivas, mas creio que justas, sobre a exposição. O espaço de observação é exíguo para duas das tapeçarias – Desembarque e Tomada - sendo certo que em nenhum museu (excepto, eventualmente, um construído de raiz para peças de tal dimensão) tal tarefa seria fácil; o percurso expositivo revela-se deficiente, uma vez que, ao subir a escada, o visitante se depara com a fabulosa tapeçaria do Cerco (seguramente a mais conhecida e emblemática, mas que é a segunda do conjunto), o que o leva o visitante a ter que voltar atrás, sem indicação de qual o lado pelo qual o deve fazer, para seguir o percurso da história, pois é disso - a história visual da conquista de Arzila – de que tratam as três tapeçarias, na realidade, ao visitante que não conheça as peças (que creio bem sejam uma significativa maioria) não é sugerido qualquer percurso de visita o que pode dificultar o entendimento global.
Notável relato, dessa notável expedição, organizada em três locais diferentes, para assegurar o sigilo, zarpando, posteriormente, de Lagos uma imponente força de mais de quatro centenas de velas e um efectivo de 30.000 homens. Uma impressionante força que a 22 de Agosto de 1471 ancorava diante de Arzila. No dia seguinte, apesar das adversas condições do mar, efectuou-se o desembarque, operação difícil que custou dezenas de vidas e uma caravela, mas que ainda assim não fez esmorecer o Rei que logo desembarcou. Seguiu-se a azáfama dos preparativos a montagem do acampamento, a paliçada de cerco, as primeiras bombardas, protegidas com trincheiras, bastilhas e outros artifícios de fortificação ligeira. Nesse mesmo dia, já o fogo das bombardas nacionais derrubaria dois lanços da poderosa muralha da cidade. A 24 de Agosto, à alvorada, as escadas de assalto eram encostadas às muralhas e operava-se o assalto pelas brechas abertas na véspera. Aterrados, os mouros não logravam controlar as muralhas, refugiando-se na alcáçova e na mesquita, cujas portas os Portugueses derrubaram, atacando-os aí com grande vigor e ferocidade amontoando-se os cadáveres. Era, assim, tomada Arzila aos mouros, sendo o Príncipe D. João que se bateu com distinguida bravura, armado cavaleiro na ocasião. É esta a gesta notável que, com precisão quase fotográfica as Tapeçarias nos relatam.
A quarta tapeçaria relativa à ocupação de Tânger, essa forte praça, que tanto sangue, suor e lágrimas havia custado a Portugal e cujos habitantes, aterrados com a notícia da fulminante vitória dos Portugueses em Arzila, abandonaram para não sofrerem a mesma sorte. A 28 de Agosto, D. Afonso V mandou ocupá-la pelo primeiro e único Marquês de Montemor-o-Novo, D. João (filho de Fernando I de Bragança, 2º Duque) então 7º condestável de Portugal, esta tapeçaria, relatando outra história, encontra-se bem diferenciada das demais.
Tirando estas poucas críticas a visita é, devo confessar-vos, um absoluto momento de êxtase, por diversas razões. Primeiro, porque o conjunto é deslumbrante e único (na época, como se sabe, apenas se faziam tapeçarias sobre heróis míticos ou mitológicos e/ou de temas religiosos) não de feitos presentes (o que entre outros o imperador Carlos V retomará depois), segundo, porque o tão maltratado historiograficamente soberano "Africano” – memória revivida do velho Cipião - aqui revela o seu verdadeiro esplendor e finalmente porque aqui se revela uma das fontes primárias para o estudo da emblemática pessoal do Rei, entre muitas outras razões que variarão consoante a sensibilidade e formação dos visitantes.
Acompanha a exposição um catálogo de elevadíssima qualidade gráfica e preço consonante (30€) mas absolutamente normal para publicações análogas. De qualquer modo, independentemente da escolha de um historiador espanhol para fazer o enquadramento da história das conquistas de D. Afonso V e da total ausência de um estudo da emblemática do soberano (a sua famosa empresa) cremos que este catálogo (cuja primeira apreciação não resulta ainda da atenta leitura) será de leitura e consulta obrigatória para qualquer trabalho futuro sobre iconografia da política africana e/ou emblemática de D. Afonso V.
Um pormenor, relativamente desconhecido, mas importante que importa referir, o de Salazar ter tentado a sua devolução a Portugal o que não foi conseguido logrando-se apenas a realização das cópias que se encontram no Paço Ducal de Guimarães.
Vão, pois, ao MNAA que vale, absolutamente, a pena.
in, O Diabo, 20.07.2010, p.18
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