Entre a Última Ceia e a Festa dos Deuses
ENTRE A ÚLTIMA CEIA E A FESTA DOS DEUSES
Na sequência da polémica causada por uma das cenas da
cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, muitos sabichões, inclusive
comentadores das nossas televisões como Ana Gomes, criticaram a reacção dos católicos que se indignaram. Então esses católicos não sabiam que essa cena era
uma adaptação de um quadro de um pintor neerlandês sobre o tema "O Festim
dos deuses" e que não tinha nada a ver com a "Última Ceia" de
Leonardo da Vinci?? Pois bem, fiz uma pequena investigação que agora partilho
convosco com as respectivas imagens.
Quadro 1 - Leonardo da Vinci pinta a fresco em Milão
"A Última Ceia" (1495). Com o passar do tempo esta imagem torna-se um
ícone desse episódio estruturador do Cristianismo. De acordo com o Evangelho, a
Eucaristia foi instituída por Cristo nesse momento, que os católicos celebram
sempre na Quinta Feira Santa.
Quadro 2 - Rafael, em 1515, usa o mesmo envolvimento
para pintar o festim dos deuses, num período em que a obra de Leonardo ainda
não tinha ganho a fama. Estamos no apogeu do Renascimento, no mesmo ambiente
intelectual que ainda vai ser usado, por exemplo, por Camões em "Os
Lusíadas" e a Igreja está sedenta de reforma.
Mas essa reforma, desencadeada por Lutero a partir de
1517 vai trazer mais do que a reforma das instituições, que quase todos
desejavam. Lutero nega a maior parte dos sacramentos, incluindo a Eucaristia e
o mistério da consubstanciação.
Certamente por isso, os artistas que continuaram a
pintar o Festim dos Deuses, colocaram-no antes num jardim, separando a tradição
greco-romana das novas polémicas suscitadas pela Reforma. A memória da Última
Ceia ganhou um novo sentido desde então e passou a ser preservada.
Quadro 3 - O festim dos deuses por Ticiano (1490-1576)
(iniciado por Bellini (1436-1516), mas terminado por Ticiano que pintou
precisamente a envolvência)
Quadro 4 - O festim dos deuses por Rubens (1577-1640)
Quadro 5 - O festim dos deuses atribuído a Jan van
Balen e a Hendrik van Kessel, moradores na católica Antuérpia em meados do
século XVII
Outros temas semelhantes, como o triunfo de Baco por
Velasquez (1629) também foram pintados na envolvência de um jardim.
Os nossos simpáticos e inocentes organizadores dos
Jogos desconhecem toda esta tradição católica ou pura e simplesmente
ignoraram-na. Rubens? Ticiano? pfff
Entretanto, em 1635, Jan Harmensz van Bijlert,
neerlandês calvinista estabelecido em Utrecht, que visitara Itália e se deixou
influenciar por Caravaggio, resolveu também pintar o festim dos deuses, mas ao
contrário do que faziam os seus colegas católicos de Antuérpia, resolveu repor
o Festim em torno de uma mesa, ao modo da icónica "Última Ceia".
Resumindo:
O quadro de Bijlert não é "a" representação
original do Festim dos deuses, que foi pintado em plena contra-reforma por
católicos num outro enquadramento.
O quadro de Bijlert, produzido em plena Guerra dos
Trinta Anos, quando católicos e protestantes se enfrentavam cruelmente nos
campos de batalha e disputavam sem quartel as questões teológicas nos púlpitos
e nos livros, tem de ser entendido num enquadramento de afrontamento contra o
mundo católico. Bijlert, que viajara por Itália, sabia o que estava a fazer.
Os simpáticos organizadores dos Jogos talvez não
soubessem esta pequena História que aqui vos alinhavei, mas a sua ignorância
não os torna inocentes. Já os comentadores televisivos são de facto, na sua
grande maioria, inocentes ignorantes.