António Martinó de Azevedo Coutinho
Após o testemunho de Vitorino Magalhães Godinho é difícil acrescentar qualidade aos depoimentos contra o ameaçador Acordo. No entanto, os disparates deste são tamanhos que sempre é possível recensear depoimentos autorizados e susceptívies de o pôr em causa, de o ridicularizar e de desmontar com certeira justeza algumas das suas falsidades e incoerências.
É o caso das duas personalidades hoje seleccionadas para o efeito, ambas docentes universitárias no activo, ambas linguistas experimentadas, ambas militantes de primeira linha no combate ao “monstro”.
Cármen Gouveia é linguista e professora na Universidade de Coimbra. Dela é a autoria do texto O (des)Acordo Ortográfico: análise fria de um assunto brevemente em ebulição, disponibilizado em Edit on Web, em Outubro de 2009.
Daí se transcreve um curto excerto:
“Em criança, como certamente a maioria das pessoas que agora estarão com cerca de 40 anos, li (em português do Brasil) a banda desenhada do Zé Carioca, do Professor Pardal, da Mónica (aliás, Mônica!) e nunca escrevi as palavras com essa grafia (êle, idéia, combôio, Amazônia, etc.). Nem, certamente, os da minha geração, que tinham consciência das diferenças!... (...) Com efeito, parece-me bem mais problemática a re-aprendizagem da escrita em crianças e adultos (tanto mais que, a certo ponto, já não se vai saber o que é obrigatório e o que é facultativo!), que aí sim começarão a dar erros ortográficos em todos os territórios em que o Acordo entrar em vigor. E se se acha que para a criança de 6 ou 7 anos há muita dificuldade em saber se escreve o ‘p’ em ‘baptismo’ e o ‘c’ em ‘correcção’, para o que poderá (e deverá!) recorrer a um dicionário, mais complicado se torna gerir as diferenças e relações lexicais ao usá-lo e saber onde procurar se se passar a escrever ‘Egito’ e ‘egípcio’, por exemplo. Isto é incoerente com o que se diz na nota explicativa e é ainda mais difícil para um estrangeiro aprender a nossa língua, tanto mais que se consagra a dupla grafia em palavras de uso muito frequente e há discrepância entre formas da mesma família lexical.”
O outro docente, António Emiliano, linguista e filólogo consagrado e professor na Universidade Nova de Lisboa, tem-se particularmente destacado nas iniciativas contrárias ao Acordo. De um dos seus inúmeros textos públicos, divulgado no Jornal de Notícias de 13 de Julho de 2008, respigámos:
“O que impedirá a mente criativa de crianças em idade escolar de gerar abdutivamente formas gráficas que nem a nova ortografia xenófila contempla? O que as impede de FACULTATIVAMENTE introduzirem acentos circunflexos em palavras com Ê e Ô tónicos, se a nova ortografia unificada se baseia no princípio fonético, na consagração pelo uso e na facultatividade?
Como perceber o que é facultativo e o que é obrigatório? Como entender o que se mantém para distinguir e o que se não mantém apesar de distinguir? Como é que confusões destas contribuem para simplificar a ortografia portuguesa, outro princípio peregrino do acordismo?
Repare-se que DECEÇÃO passa a ter um P mudo facultativo, não porque a letra E se pronuncie como vogal aberta (isso não tem importância nenhuma para os autores do Acordo, como eles próprios dizem - está escrito na Nota Explicativa do AO), mas porque no Brasil se escreve com P.
Ou seja, o meu P mudo, que até agora era euro-afro-asiático-oceânico e servia para indicar o timbre da vogal precedente, passará a ser brasileiro, e é por ser brasileiro e por não ser mudo na norma culta brasileira que eu vou poder continuar a escrevê-lo muda e ortograficamente em Portugal.
Alguém consegue explicar isto a miúdos de 10-12 anos apanhados entre ortografias?
Para sabermos escrever bem em Portugal teremos de saber como se escreve bem no Brasil. Isto fará algum sentido para uma criança ou jovem em idade escolar ou para algum professor?
Alguém explique por favor como será um manual escolar unificado.
Terá de haver, forçosamente, pois não há discernivelmente regras que iluminem o uso da nova ortografia. Os professores, enquanto não conseguirem decorar essas listas, terão de andar sempre com elas debaixo do braço nas aulas e na correpção dos testes dos alunos.
Uma alternativa é o sábio conselho dos U2 de há quinze anos, nos tempos do Zooropa Tour: ‘WATCH MORE TV’. Ou seja, veja mais telenovelas brasileiras e aprenda português.
Os professores poderão FACULTATIVAMENTE ensinar as grafias que preferem? Cada professor e cada aluno escolherá a forma correpta que mais lhe agradar? Ou será por ano, ou por escola, ou por distrito?
E quando um professor fundamentalista que escreve Ps mudos (autorizados pela norma culta brasileira, bem entendido) faltar e for substituído por um professor fonético que não escreve Ps mudos? Muda a ortografia nesse dia na sala de aula?
E os encarregados de educação como farão para esclarecer os menores a seu cargo e os acompanhar nos seus estudos de português?
Aprender a escrever e a ler (que já agora, são coisas que o cérebro aprende separadamente) é uma tarefa portentosa e difícil, que requer a aquisição de hábitos, rotinas, regras, disciplina, repetição. Reiteração contínua de padrões, comportamentos e usos. Como se aprende sem estabilidade no processo de aprendizagem?
Quantas revisões da ortografia unificada se avizinham nos próximos anos para maximizar o princípio fonético, acompanhar o uso e unificar mais a acordortografia unificada?
Como foi possível chegar-se a este ponto em que se tem que explicar o obviamente inexplicável, e em que o obviamente inargumentável tem que ser argumentado?
Que processo de involução cultural se abateu sobre nós que nos trouxe a esta conjuntura bizarra, em que o absurdo evidente do AO é que tem que ser explicado e demonstrado (como se não fosse evidente) e a sua não aplicação é que tem que ser justificada (como se ninguém percebesse o desastre que é)?
O colunista brasileiro Hélio Schwartsman escreveu sobre o AO, ‘quanto mais penso, mais fico revoltado. Toda a situação pode ser resumida como um conluio entre acadêmicos espertos e parlamentares obtusos.’
Não me satisfaz completamente, não explica tudo, mas faz algum sentido. É, pelo menos, um fragmento de explicação.”
Dois professores experimentados dão-nos conta da sua posição sobre o tema, com conhecimento do terreno que pisam, contrapondo a sua voz aos teóricos laboratoriais enredados nas políticas linguísticas.
O antigo ensino do Português ou o ensino do antigo Português, como modalidades curriculares, estão em risco. A ameaça, agora, chama-se ensino do novíssimo Português, entendendo-se por “novíssimo” o surrealista conjunto TLEBS/Acordo Ortográfico...
Aproximamo-nos do fim.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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