António Martinó de Azevedo Coutinho
“A história dos acordos e desacordos linguísticos entre Portugal e o Brasil constitui, aliás, uma longa lista de avanços e recuos, de banalidades e de pormenores, onde as contradições constituem a regra fundamental.” Escrevi isto na última crónica e tentarei prová-lo, ainda que sumariamente.
Bem melhor do que poderia eu fazê-lo, basta conceder a palavra ao professor Ivo Castro, catedrático de Linguística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, citando, do seu um artigo publicado na revista Media XXI, em Outubro de 2006:
“A questão ortográfica entre Portugal e o Brasil é um bom exemplo da irritação brasileira face à metrópole e da forma como Portugal não geriu bem o ascendente que tinha em relação ao Brasil. O diferendo nasce de uma 'gaffe' diplomática portuguesa. Em 1911, Portugal codifica pela primeira vez a sua ortografia. Até então a ortografia era de tipo etimologizante, bastante afastada da realidade fonética e não estava codificada, pelo que permitia uma grande variedade de grafias. A comissão de linguistas, encarregue pela República de fazer uma ortografia, produziu um documento tecnicamente muito bom. Mas ninguém pensou que era preciso perguntar aos brasileiros se aceitavam aquela ortografia! Os brasileiros ficaram muito ofendidos e fizeram uma anti-ortografia, ou seja, escolheram soluções propositadamente diferentes. Desde essa altura, tem havido sempre tentativas de conciliação e aproximação que, por um motivo ou outro, nunca batem certo. Em 1986, as autoridades dos dois países estiveram de acordo em fazer uma ortografia única. Mas, desta vez, ao contrário do que aconteceu em 1911, foram os linguistas que não estiveram à altura da tarefa e produziram um documento tecnicamente muito fraco. Depois houve mais duas versões, muito diferentes uma da outra, a última de 1990, assinada no Brasil e em Portugal, mas a discussão em torno da unidade ortográfica já tinha tantos anos e já tinha sido tão intensa que, na realidade, nenhum governo se sentiu com coragem para dar o passo seguinte e pôr a ortografia a funcionar. O que acontece é que já passaram dezasseis anos, a ortografia de 1990 continua na gaveta e ninguém de facto dá pela sua falta. O que é prova suficiente de que a coabitação de duas ortografias, uma própria do Brasil e a outra própria de Portugal e restantes países lusófonos, deve ser encarada como situação irreversível, que temos de assumir e levar para a frente.”
Portanto, no próximo ano, 2011, comemora-se o centenário do primeiro Desacordo Ortográfico luso-brasileiro. Como grotesca comemoração, procuram alguns iluminados ressuscitar agora uma falsa solução do problema, a de 1990, rigorosamente classificada por Ivo Castro como desastrada e inútil...
E, quanto às eventuais implicações do iminente desastre no ensino da Língua às mais novas gerações lusas, já alguém nisso pensou? Esta questão, que apenas revela mais uma grave consequência da concretização prática do Acordo, já tem vindo a ser equacionada.
Vejamos um simples exemplo, retirado do próprio texto oficial. No Anexo II (Nota Explicativa) do Acordo Ortográfico, escrevem os seus autores: “É indiscutível que a supressão deste tipo de consoantes (mudas) vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam. De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua.”
A primeira e óbvia resposta que esta aleivosia merece será a de perguntar aos seus autores se pretendem esquecer a origem latina dos termos sugeridos, onde se explica o facto de o p e o c não terem nascido duma delirante fantasia de antigos (gramáticos) portugueses, antes assentando em legítimas raízes etimológicas: conceptione, exceptione, receptione, correctione, directione, objectione...
A gratuita cedência aos eventuais interesses ortográficos dos irmãos brasileiros obrigar-nos-á ao repúdio da herança linguística dos avós romanos?
Logo a seguir, também apetece questionar os preclaros autores sobre a sua precisa noção de enorme esforço de memorização...
Antes do mais, e a propósito de memorização, atrevo-me a recapitular um curto trecho da entrevista a Maria do Carmo Vieira, embora já atrás citado:
“- Por isso, defende no seu livro que algumas práticas educativas tradicionais deveriam ser retomadas?
- Por exemplo, quando se diz que não se deve memorizar, está a pôr-se em causa uma capacidade incrível das crianças que é a memória e a tabuada é para memorizar. Por isso mesmo, é que eu tenho alunos de 12.º ano que às vezes nem sabem quanto é 9x3. Há alunos que não me sabem conjugar os verbos: só me dizem presente, passado e futuro. E isso é porque não se estuda a gramática desde o início.”
Como é óbvio, ninguém no seu juízo normal pensará na “ressurreição” de certas práticas da antiga Escola -a de alguns de nós- que proclamavam os méritos de papaguear, de cór e salteado, a relação dos afluentes da margem esquerda do Douro, os nomes das esposas e dos filhos de todos os reis de Portugal, as precisas datas de mil e uma descobertas dos nossos navegadores de Quinhentos, a lista completa das preposições e dos advérbios ou as estações e apeadeiros da Linha do Norte, para não citar toda a nomenclatura das montanhas de Moçambique ou dos rios de Angola...
Porém, sem mais reflexões sobre as vantagens de um adequado treino da memória, imprescindível na Escola como na Vida restante, não posso deixar de imaginar que a poupança defendida pelos autores do acordo deve ter sido por estes pensada em favor da memorização -essa perfeitamente dispensável!- das absurdas regras da não menos famigerada TLEBS...
Continua na próxima crónica.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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