António Martinó de azevedo Coutinho
Ao divulgar o seu livro, Maria do Carmo Vieira tornou-se, de passagem, “vedeta” da nossa comunicação social. Na TV, na rádio e na imprensa, sucederam-se entrevistas e depoimentos, alguns suscitados por controversos espantos, como se alguém tivesse descoberto a pólvora e revelado ao mundo atónito a sua prodigiosa invenção...
Infelizmente, a opinião então divulgada -de forma tão honesta como crua- é apenas o retrato fiel de uma realidade que apenas os mais distraídos ou os cegos voluntários não tinham ainda descortinado.
Hoje não me apetece escrever. Acho que é muito mais produtivo, e eficaz, dar a palavra a Maria do Carmo Vieira, recuperando aqui algumas passagens de uma das tais entrevistas, precisamente divulgada por portais da internet, em duas partes, nos passados dias 16 e 17 de Junho. Os seus respectivos títulos, aliás destacados do próprio miolo da entrevista, são desde logo significativos: “Estamos a criar alunos que não sabem ler, nem escrever” e “Os alunos foram passando sem saber nada”.
Eis os excertos seleccionados:
“- O ensaio O ensino do Português vem apontar o que está mal na educação em Portugal. O seu objectivo era dar uma ‘reguada’ no sistema educativo?
- A escola não pode permanecer tal como está, porque já bateu fundo - e não só em relação ao ensino do Português, mas em várias outras matérias. Estamos a ensinar na base daquilo que é fácil, do que não exige esforço, nem trabalho. Estamos a fomentar gerações e gerações de alunos que não pensam, nem sequer sabem falar ou escrever. Ao tornar a facilidade da escola comum para todos, um aluno que venha de um contexto familiar rico, do ponto de vista cultural, não vai ficar prejudicado, porque os pais hão-de ter sempre dinheiro para ele ir para explicadores ou para ir para boas escolas. Já aqueles que vêm de espaços mais fragilizados socialmente, esses sim, é que vão ser torturados e explorados pela sociedade.
- Hoje, arrancam os exames nacionais. Também eles são um exemplo desse facilitismo?
- Sem dúvida. Não é preciso estudar para um exame. Basta ir com um pouco de sorte e, como aquilo tem muitas cruzes, às vezes é quase 1x2. Estes exames são áridos. Um aluno qualquer, que vá fazer aquilo, está a fazer aquilo porque é obrigado a fazer. (...)
- Também os programas escolares actuais partilham do mesmo problema?
- Os programas são feitos à base da mediocridade. Não têm um fio condutor, não têm um objectivo primeiro. É tudo solto. As coisas estão soltas, e sei isso pela disciplina de Português, que lecciono. No ensino da Literatura, não há uma contextualização do autor. Quando um professor pede a um aluno para estudar a contextualização, encaminha-o para a Internet, quando deve ser o professor a exprimir isso. Se assim não for, o professor não serve para nada. (...)
- Nesse caso, quais são os caminhos alternativos onde se deve apostar?
- A competência científica de um professor tem que ser novamente privilegiada. Neste momento, não é. É mais prejudicial um aluno ter o professor “bom camarada”, mas que não sabe nada e que nada sabe transmitir, do que ter um professor que talvez não seja muito bom pedagogo, mas que tem muita competência científica. É preciso também insistir na formação dos professores: não sabem escrever, não sabem pensar. Gostam, não daquilo que é artístico, mas daquilo que é bonito… Fazem das crianças estúpidas e intuem aquilo que as crianças não são. Qualquer criança responde à exigência, se vir que o seu professor também a estimula.
- Tendo em conta tudo o que disse: os pais podem ou não confiar na educação que o sistema hoje dá aos seus filhos?
- Não podem. E nem só os pais não podem ficar descansados. O que este Ministério tem feito, e isso é muito nocivo, é libertar os pais das suas preocupações com os filhos. Parece que tudo fica entregue à escola… Mas os pais são muito importantes no acompanhamento do estudo dos seus filhos. Não é correcto que um aluno passe para a quarta classe sem saber ler, nem escrever. Os pais têm que acompanhar isso, têm que ver que alguma coisa não está a ser bem feita. Os pais têm de se voltar a interessar. (...)
- Por isso, defende no seu livro que algumas práticas educativas tradicionais deveriam ser retomadas?
- Por exemplo, quando se diz que não se deve memorizar, está a pôr-se em causa uma capacidade incrível das crianças que é a memória e a tabuada é para memorizar. Por isso mesmo, é que eu tenho alunos de 12.º ano que às vezes nem sabem quanto é 9x3. Há alunos que não me sabem conjugar os verbos: só me dizem presente, passado e futuro. E isso é porque não se estuda a gramática desde o início.
- Diz que a falta de paz no sistema educativo contribuiu para a degradação da sua qualidade. Ainda assim, pede aos professores que desobedeçam às actuais directivas. Em que ficamos?
- Esta “guerra” foi suscitada pela imposição de tanta novidade. Era o novo só pelo novo e os professores nunca foram convidados a intervir. Só uma facção - aquela que era a favor destas novas teorias. O que eu peço no meu livro é que é preciso desobedecer a isto: não posso obedecer a quem me vem dizer que eu tenho de ser compreensiva com os erros ortográficos. A paz é um bem essencial para se ensinar, mas se obedecermos a tudo isto, estamos a abandalhar a nossa profissão e isto não é correcto, nem connosco, nem com os próprios alunos. Há momentos em que é forçoso desobedecer, nem que nos ameacem. A mim ameaçaram-me várias vezes… (...)
- Mais recentemente, criticou também o programa Novas Oportunidades, pelo facilitismo com que atribuiu competências…
- Trata-se de uma fraude e de uma falta de respeito para com as pessoas que acreditaram no programa, Conheço inúmeros alunos que pensavam que voltavam à escola para aprender e aperceberam-se de que não iam aprender nada. Não se faz o 7.º, 8.º e 9.º em três meses, não se faz o 10.º, 11.º e 12.º ano em seis meses. Isto não tem qualquer equivalência, porque se esses alunos fossem questionados, não sobre as matérias até do 10.º,11.º e 12.º, mas sobre qualquer coisa minimamente inteligente, estavam a zero. Eles são a personificação da ignorância, mas uma ignorância que é fomentada pelo próprio sistema e, por isso mesmo, eu digo: é preciso desobedecer a isto.”
Fica aqui muita matéria para reflexão, mesmo que, com toda a legitimidade, dela se discorde. Mas é preciso saber os porquês e explicitá-los. A discussão impõe-se.
E até à próxima.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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