António Martinó de Azevedo Coutinho
O livro de Maria do Carmo Vieira devolveu-me o contacto com dois colegas e amigos, que são citados nas suas páginas. Um, nortenho, acompanhei-o bem de perto e habituei-me a admirá-lo pelo seu notável trabalho na investigação e defesa da Língua Pátria: Álvaro Gomes. Nos finais da década de 70 e nos anos 80 integrámos o grupo pedagogicamente empenhado numa interessantíssima experiência linguística e semiótica nos domínios da Iniciação à Comunicação AudioVisual (ICAV), liderada pela Direcção-Geral do Ensino Básico e pela Academia de Bordéus.
Docente jubilado da Universidade do Minho, depois de ter sido vice-presidente da Associação Europeia de Professores, autor consagrado de quase uma centena de obras publicadas sobretudo nos domínios do ensino do Português, Álvaro Gomes é agora abundantemente citado por Maria do Carmo Vieira. Por exemplo: “Quem dá a estas Damas e Cavalheiros o direito de imporem algo que não é apenas do domínio de ‘especialistas’, mas uma questão social? (...) [a TLEBS] nem é ponto de partida, nem é ponto de chegada. Nem sequer é uma nova terminologia, mas uma nova e voluntarista teimosia em emplastrar os Ensinos Básico e Secundário com pastosas nomencla(tor)turas que, salvo um ou outro aspecto mais fecundo, não devem, à letra, ser usadas nestes níveis de ensino.”
Ao outro colega, este bem portalegrense, acompanhei-o aqui na sua juventude em andanças conjuntas pelos universos fascinantes da banda desenhada. E já então o Carlos Ceia se preocupava com as questões da Língua, bastando para isso recordar a sua magnífica crítica literária ao álbum A Primeira Aventura do País do João, publicada no saudoso “fanzine” lagóia A Nossa Banda, ou a sua rigorosa intervenção num colóquio integrado nas Jornadas BD e Pedagogia (Portalegre, ESEP, Maio de 1987). Além de autor de apreciadas obras sobre a condição docente e diversas áreas da língua, Carlos Ceia é hoje director do Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona e forma professores, na sua Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Uma das suas citações, inserida no livro de Maria do Carmo Vieira, é por si só suficientemente significativa: “O programa de Língua Portuguesa [10.º Ano] é, na verdade, um programa de Práticas de Secretariado, que visa educar o adolescente na técnica de bem escrever um texto não-literário, ficando a sua formação literária reduzida ao estudo mecânico da língua materna.”
A obra aqui em apreço é, portanto, uma vigorosa e fundamentada denúncia dos erros e atropelos oficialmente sofridos por esta nobre função de ensinar aos mais jovens lusitanos, e não só a estes, o devido e justo uso da sua língua materna.
Devemos ser honestos na apreciação deste fenómeno. A geração a que pertenci, e as que lhe ficaram próximas, não dispuseram certamente dos mais perfeitos instrumentos para a aprendizagem da língua. Por exemplo, lembremos o que acontecia com Os Lusíadas, obra maior da portugalidade literária. Propunham-nos então, como exigência programática, que aí dividíssemos orações, exercício por vezes penoso que remetia o predicado relativo a algum sujeito para duas estrofes adiante, passe o anedótico exagero... Depois havia o caso, quase policial, que nos “escamoteava” o Canto IX, por “indecoroso”. Mas conseguíamos sobreviver a estas duras penas, até porque os professores (e o próprio programa!?) encontravam engenho e arte bastantes para nos compensarem com a soberba lírica de Camões, só por si capaz de anular todos os anteriores e perniciosos efeitos secundários.
Lamentavelmente instalados na nossa penúria cultural e de tempos livres, sem play station nem internet, até mesmo -imagine-se!- sem TV, éramos então forçados a mergulhar, para além dos jogos do berlinde, do eixo ou das caricas, nas alternativas possíveis, entre as quais a sugerida leitura dos nossos clássicos, muito para além das estritas obrigações escolares. Dentro e fora dos liceus, a malta conhecia alguns “tipos” hoje impensáveis, mais a sua criação literária. Em vez de Ronaldo ou de Mourinho, dos Xutos ou de Quim Barreiros, de Sócrates ou de Cavaco, nós entretínhamo-nos com obras de outras personalidades, embora talvez menos sonantes. Davam (e dão) pelos nomes de Fernão Lopes ou Gomes de Zurara, António Ferreira ou Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão (portalegrense -segundo consta-, quem o conhece hoje, por cá!?) ou Diogo Bernardes, Fernão Mendes Pinto ou Pero Vaz de Caminha, Sá de Miranda ou Rui de Pina, João de Barros ou Gil Vicente. E, também, D. Francisco Manuel de Melo, Francisco Rodrigues Lobo, os padres António Vieira e Manuel Bernardes. Ainda António José da Silva e Curvo Semedo, Luís António Verney e Barbosa du Bocage, Nicolau Tolentino e Pedro Correia Garção. Ou, então, Alexandre Herculano e Almeida Garrett, Feliciano de Castilho e Soares de Passos, Guerra Junqueiro e Antero do Quental, António Nobre e Florbela Espanca, João de Deus e Pinheiro Chagas, Cesário Verde e Eça de Queirós, Júlio Dinis e Fialho de Almeida, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. Mais, havia também Afonso Lopes Vieira e António Botto, António Sardinha (outro nosso vizinho!) e Augusto Gil, Almada Negreiros e Júlio Dantas, Raúl Brandão e Fernando Pessoa...
Deixei para trás ou esqueci alguns outros, que me perdoem a falha!
Naturalmente, havia então certos autores demasiado “frescos” para entrarem no rol, como Miguel Torga ou, sobretudo, José Régio. A este, por cá apenas o conhecíamos como professor franzino, exigente e reservado, longe como estávamos, nesses tempos, de adivinhar o seu gigantesco vulto intelectual e literário...
Depois, os que ficámos infectados pelo “vírus” -felizmente não mortal e infelizmente não contagioso- tentámos actualizar a “doença” com novas “estirpes” virais: Gedeão ou Redol, Ary ou Sophia, Cesariny ou Alegre, Sena ou Saramago...
Volto um dia destes.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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