António Martinó de Azevedo Coutinho
O Accordo Ortographico (por favor, deixem passar mais esta brincadeira!) tem constituído motivo para desencadear fortes protestos individuais e motivar movimentos colectivos organizados, onde parece prevalecer um bom senso que vai faltando, pelos vistos, aos altos responsáveis pátrios, incluindo o venerando Chefe do Estado. Portanto, e A Bem da Nação, muito provavelmente acabaremos por dispor de um ruinoso instrumento adequado para dividir e atrasar, ainda mais, os portugueses.
Vitorino Magalhães Godinho é um dos mais notáveis e respeitados académicos nacionais, professor catedrático jubilado da Universidade Nova de Lisboa, pioneiro entre nós das Ciências Sociais, referência internacional dos domínios das modernas correntes historiográficas da Sociologia. Os seus espírito crítico, permanente atitude problematizadora e capacidade de elaboração teórica nas questões que aborda tornaram-no uma autoridade respeitada.
No número de 26 de Março de 2008 da revista Visão, ele subscreveu um importante estudo sobre o Acordo Ortográfico, intitulado A Língua Portuguesa em tratos de polémica. Dada a sua extensão, dele apenas se citam aqui, com a devida vénia, alguns excertos significativos, onde são abordados aspectos históricos, científicos, socioculturais e, sobretudo, pedagógicos do diploma:
“Surpreendentemente, reacendeu‐se a questão da ortografia da língua portuguesa que fora ateada pelo projecto elaborado pelas duas Academias do Brasil e Portugal em Maio de 1986, com assinatura oficial em Dezembro de 1990. Surpresa, porque as intervenções e discussões que então se multiplicaram demonstraram irrefutavelmente a sua inconsistência científica, a insensatez das normas que prescrevia, a inoperância prática no domínio cultural. Acrescia a ilegitimidade de pretender espartilhar oficialmente esse bem comum sedimentado por séculos e que é um dos alicerces da nação. Concluira‐se sensatamente por enterrar sem apelo nem agravo o ruim defunto.
Porque é que se volta a desenterrar esse projecto de acordo, com suspeita pressa em impor essa catedral de dislates? Trata‐se, uma vez mais, de decisões quanto ao software linguístico, de oportunidades para os livros didácticos escolares, e ainda do papel que o Brasil pretende assumir no mundo que foi o da pretérita acção portuguesa. Ressuscitam‐se velhos argumentos de validade mais do que duvidosa, como o de que a simplificação ortográfica contribui para erradicar o analfabetismo. Ora a verdade é que a alfabetização triunfou nos países que mantiveram a secular maneira de escrever - a Inglaterra, a França, antes dos demais. Mas agora avança‐se com a preocupação de formar um grande bloco luso‐afro‐brasileiro, sob a égide dos 180 milhões do Brasil, esquecendo que o bloco anglo‐americano não beneficia de unificação ortográfica. E não se quer ver que a questão essencial é a das próprias palavras e da maneira de construir as frases, é a da forma de pensar.
Uma condição prévia deve constranger toda a questão e propostas. A língua é um complexo cultural que se vai afeiçoando ao longo dos séculos, pela maneira de falar e de escrever do povo e das elites, pela reflexão dos cientistas que a estudam, pela análise dos historiadores que se consagram a compreender os homens na multiplicidade dos seus itinerários e aspirações. Na língua se exprime a coesão colectiva, ela é esteio da soberania, não pertence a uma geração, é o património das gerações passadas e presentes, a legar às gerações futuras. Não pode por isso ser modelada por actos de soberania; as instituições não têm legitimidade para lhe vazar os moldes, não lhes cabe assentar normas quanto à sua natureza e funcionamento. Qualquer acordo ou acto normativo de órgão de soberania ou outras instituições é írrito e nulo; a única capacidade que se pode reconhecer‐lhe é a declaração do carácter oficial de dada língua no espaço de um Estado.
Quando se pretende reduzir o analfabetismo servindo‐se da simplificação ortográfica cai‐se na divulgação de uma cultura de segunda, que seria pretensamente a adequada às massas; na realidade não se simplifica a aprendizagem porque se põe a tónica na memorização em vez de incitar o raciocínio. Não é o facilitismo que nos dá acesso à cultura - veja‐se o resultado calamitoso dos sistemas de ensino que têm vigorado; à cultura acede‐se enfrentando dificuldades com inteligência e gosto pelo esforço.
As palavras e as formas das frases não são caprichos de quem escreve e fala (e já de quem concebe), são bens culturais que carregam em si um cabedal secular de significações; obras que o pensamento vai esculpindo e que não podemos tratar arbitrariamente. Conhecer a sua história é compreender mais fundo o que têm para nos dizer, é enriquecermo‐nos pela maneira de pensar segundo a razão. Por isso a forma é essencial, discriminar a composição dos termos e das relações precisa o sentido do que se pretende comunicar. A etimologia não é o supérfluo que só pode interessar os especialistas, é um meio que a todos serve para perscrutar e alcançar a compreensão plena. Mas é necessário que a forma apresente todos os indicadores para que o sentido seja plenamente apreendido. É puro disparate, assente na teoria do povo ignaro, sustentar que eliminando toda a sinalética complementar (acentuação, consoantes ditas mudas) se facilita a compreensão; aumenta‐se, sim, a imprecisão, e, logo, obscurece‐se a clareza do pensamento. Convém, portanto, abordar algumas das questões que nestes campos se levantam (e que o projecto de Acordo estropiou). (...)
As diferenças ortográficas existentes não impedem os portugueses de ler correntemente os textos brasileiros, nem os brasileiros de ler os textos portugueses. E de apreciarem, uns e outros, o próprio sabor da língua. Não é necessária a uniformidade para que o conhecimento recíproco se estreite; ele depende, sim, de uma comunidade cultural. Se esta não existir, de nada valem disposições legais. Diria que o mais relevante é a consciência dos valores que a língua veicula, e entre eles figura sem dúvida o pleno significado que cada elemento carreia de século para século. Tudo depende de dois factores: por um lado, a amplitude e diversidade das trocas culturais entre os países, a todos os níveis; por outro, a solidez da cultura elementar em cada país, o seu bom conhecimento de si próprio, a contribuição que nele é dada pela investigação científica e pela criação literária, artística, técnica. Não é por negociações diplomáticas, tratados, normativismo institucional que se mantém a unidade linguística - é pela comunhão cultural, assente na riqueza do património partilhado e no contributo das construções voltadas para o futuro. Mas não tenhamos ilusões: a evolução inevitável destes países entre si distantes e sujeitos a forças sociais‐económicas e culturais contrastantes tenderá mais a distanciá‐los do que a aproximá‐los, embora os novos meios de telecomunicações possam contrabalançar alguns desses factores de diferenciação. (...)
O analfabetismo tem regressado em força, e as línguas perderam as suas qualidades próprias. Efeitos da mudança económico‐social que passou a basear‐se num saber‐fazer que não se enquadra numa vivência cultural e substitui o convívio com os clássicos - de Fernão Lopes e Gil Vicente a Garrett, e a Eça, Aquilino, Sophia de Mello Breyner - pela empanturradela de manuais de gestão e comunicação social, e também não integra as grandes obras da humanidade, sejam de ficção, sejam de pensamento - um Descartes e um Spinoza, Kant e Condorcet, Montesquieu e Tocqueville, Marc Bloch e Lucien Febvre (mera exemplificação). A cultura tem de ser rigor e exigência crítica, e não se constrói a democracia com bugigangas de pacotilha; o cidadão tem de educar‐se para a dificuldade.
Deixem de se entreter alguns quantos eruditos e instituições públicas a congeminar modelos linguísticos e a sonhar impô‐los oficialmente, trabalhem escritores e cientistas na pesquisa científica e na criação cultural, alargando‐se a base de formação, de modo a valorizar o legado que recebemos. Legado onde tem de ocupar lugar de relevo a língua portuguesa, agora património comum de diferentes povos. Para tal é indispensável uma sensata organização do sistema educacional. As bases têm de ser solidamente assentes no ensino primário e no ensino básico, criando a intimidade com as palavras, habituando a construir correctamente as frases, de modo a sentirmos gosto por falar, ler e escrever a nossa língua (e também as outras). O que se acentuará nos três anos terminais, pelo conhecimento do que tem de melhor a nossa literatura, ligando‐a à compreensão da nossa evolução colectiva, como manifestação da cultura. O problema fulcral do 10.º, 11.º e 12.º anos está nos inconcebíveis programas, amontoado de listagens de ‘conceitos’ abstrusos e de estultas preocupações com ‘objectivos’ e ‘finalidades’ e formação de ‘competências’; que delicioso adormecer em relatórios, procurações, requerimentos, passando pelo literário como cão por vinha vindimada! E em vez de se consagrar a escorreita estilística e manejar com destreza a boa gramática, perde‐se o tempo no dédalo de confusas construções pseudo‐logicogramaticais. Queixam‐se dos maus resultados a Português (e Matemática), mas o que me admira é que ainda haja quem consiga resultados positivos com tal ensino (e que os professores consigam ministrá‐lo). É urgente, é imperativamente indispensável suprimir todo - mas mesmo todo, esse programa desarrazoado; o que importa é levar os jovens a apreciarem o convívio com as obras literárias e por ele alicerçarem a sua formação cultural, que implica o gosto de bem pensar e bem se exprimir.”
Depois de uma justa e merecida pausa para recreio e reflexão, retomaremos a questão.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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