\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, setembro 06, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

Outro dos testemunhos com grande significado, contrariando as teses do senhor Bienvenu, chega-nos também do próprio Congo. É pela pena de Alain Mabanckou, jovem e premiado escritor congolês (natural de Pointe Noire), que o seu novo “blog” -Black Bazar- nos traz uma abalizada opinião, pessoal em entrevista conduzida pelo jornalista David Caviglioli, do Nouvel Observateur. Daí retiramos algumas breves passagens:
Li os Tintin durante a minha infância, no Congo. Nessa época não dispunha de recuo para compreender a face escondida das coisas. Ficava divertido, seduzido como a maior parte dos gaiatos da minha idade.” (...)
“É claro que em Tintin no Congo as representações do Preto -não diria do Negro- têm uma conotação paternalista, racista e colonialista. O álbum apareceu em 1931 e sofreu arranjos posteriores. Hergé percebeu todas as críticas formuladas contra essa obra.” (...)
Não, não sou partidário da interdição desta banda desenhada. Ela deve ficar como um sinal do espírito belga dos anos trinta. É uma das provas históricas de uma certa forma de pensar ocidental – mas não de todo o pensamento ocidental! A polémica que rodeia esta obra arrisca-se a roçar o ridículo, por força de apenas ler as coisas sob um ángulo africanista e fundamentalista. Não foi a partir de Tintin no Congo que o pensamento do Branco sobre o Negro se formou. Quando Tintin chegou ao Congo, a ideologia racista e colonialista acerca do Negro estava já bem estabelecida.”
Pierre Assouline é um prestigiado jornalista e historiador francês, nascido em Casablanca, que entre muitas outras obras é autor de uma notável biografia de Hergé.
Sobre o tema em apreço, Pierre Assouline recusa falar em censura e também não é favorável à inserção de uma nota explicativa do editor, como apresentação do álbum. Isso constituiria uma falha de pensamento, uma abdicação, um autêntico recuo. Seria necessário proceder assim, afinal, para com todas as bandas desenhadas da época. Ele acredita que em França se estará ao abrigo de medidas do género e acredita que a censura estabelecida nos Estados Unidos (o caso da biblioteca de Brooklin) apenas aconteceu devido ao facto de Tintin não dispor aí do mesmo apreço e popularidade de que desfruta na Europa. No entanto, conclui, as coisas poderão evoluir rapidamente nos EUA depois do anunciado filme de Steven Spielberg sobre Tintin.
Um nome de prestígio no universo da BD europeia é Alain De Kuyssche, belga, antigo redactor-chefe da revista Spirou e argumentista de Jacques Martin. Hoje dirige uma empresa especializada em comunicação, consultora da Moulinsart.
Em relação ao actual pleito, ele acha “estranho que se faça muito menos caso da denúncia das práticas esclavagistas, a Este de África, no álbum Coke en Stock (Carvão no Porão).” (...) “Querer proibir um livro, um álbum de BD ou uma qualquer obra, vinte, cinquenta, cem anos, mil anos depois, com o pretexto de que tal obra não está conforme com a nossa época moderna, com o nosso sistema de pensamento ou com o politicamente correcto ambiente, isso faz-me pensar perigosamente na obra de Orwell, 1984, onde o Big Brother modifica o passado –não se dirá mais..., dir-se-á...” (...) “É particularmente estúpido, com o pretexto que vejo em 2009 num país democrático, que se deva apagar milénios de história da humanidade, sob a desculpa de que uma obra vista pelas nossas lunetas do século XXI é considerada como racista ou não-conforme. Proponho, por que não?, autos- de-fé para as obras de Balzac, porque este homem considerava que a forma do crânio era sinónimo da inteligência duma pessoa. Ele fez menção disto em quase todas as suas obras; por consequência ele pensava, tal como os seus contemporâneos depois dos estudos científicos da época (sec. XIX), que os Africanos eram intelectualmente inferiores aos Asiáticos e aos Europeus.” (...)
Tintin no Congo é pois uma simples fotografia de um período da história; interditá-lo seria de uma aflitiva estupidez, porque ele ensina, tal como os arquivos do INA (Instituto Nacional do Audiovisual) , o que foi o período colonial para os Europeus dos anos 30.”
A popular revista belga Télémoustique, no seu número 4526, de 25 de Agosto de 2007, dedicou a capa e um dossier a Tintin no Congo. Curiosamente, o semanário foi no passado dirigido por Alain De Kuyssche. Acontece que, perante o conteúdo divulgado, um conhecido historiador, politólogo e professor na Universidade Livre de Bruxelas, Joël Kotek, escreveu um artigo, Tintin au Congo: la crispation des Belges, que fez depois publicar. Entre outros argumentos, já conhecidos, o autor diz:
Se não partilho em nada a proposta do senhor Mbutu Mondondo de censurar o álbum (isto seria ao mesmo tempo absurdo e irrealista: como pensar em proibir uma ficção literária?), devo confessar que a entendo. Ela testemunha a crescente frustração dos jovens de origem congolesa, como aliás os de Ruanda e Burundi, face ao branqueamento da história colonial belga. Os tempos coloniais belgas são ainda os do silêncio.” (...) “Tintin no Congo é provavelmente um dos melhores testemunhos da mentalidade colonial. Em vez de o proibir, deve-se, pelo contrário, usá-lo como um instrumento de ensino.” (...) “Este novo caso Tintin é positivo na medida em que foi possível abrir um debate, ainda que tímido e parcial, mas que tem o mérito de existir. Este tipo de debates devia permitir a eventual cura das feridas memoriais de que sofrem os povos colonizados pela Bélgicas dos meus papás, sobretudo se for seguida, não de um mero acto de arrependimento, mas do reconhecimento oficial dos danos morais e materiais causados pela experiência colonial belga. Uma reparação simbólica é necessária. Nenhum país pode livrar-se do seu próprio passado.”
Na realidade, um outro debate foi aberto recentemente a propósito, aproveitando as modas informáticas. Referimo-nos a um espaço aberto no Facebook, intitulado J’aime Tintin au Congo... et alors?
Dispondo de mais de dois milhares de membros, no momento, o grupo é dinamizado por jovens partidários do visconde Philippe Le Jolis de Villiers de Saintignon, mais conhecido como Philippe de Villiers, um político francês, deputado europeu, nacionalista, criador do Movimento para a França.
Os fundamentos patentes no “site” são reveladores da disposição dos seus membros directores, militantes do movimento Jovens pela França, que apoia Philippe de Viliiers:
Dois anos após uma queixa por racismo e xenofobia, na Bélgica, um processo equivalente deve ser apresentado na França contra o álbum Tintin no Congo, como atesta o advogado Claude Njakany, a quem foi entregue o dossier. (...) O assunto teve origem quando um tal Bienvenu Mbutu Mondondo, um contabilista de 41 anos, de origem congolesa, apresentou queixa por racismo e xenofobia contra a obra de Hergé.
É preciso saber que em bibliotecas americanas e inglesas o álbum foi reservado ao público adulto. Em suma, estamos em pleno delírio ideológico. Para quando a proibição de:
• Montesquieu, pelas Cartas Persas?
• Daniel Defoe, por Robinson Crosue?
• Jules Verne, pelo conjunto da sua obra ?”
Philippe de Villiers já participou, com uma mensagem pessoal, em J’aime Tintin au Congo... et alors? Daí se transcreve uma breve e esclarecedora passagem:
“(...) Ele (Bienvenu) faria melhor concentrando a sua energia na luta contra a circuncisão feminina no seu próprio país... e que agora é um oportuno pretexto para pedir asilo político na Europa. A Europa é muito criticada por todos os africanos, mas não basta sonhar com uma coisa... para participar nela. Olhe-se para o que está acontecendo no Congo... ou no Senegal, onde se organizam canais de emigração ilegal para a Europa.”
No dia 16 de Fevereiro de 2010, o senhor Bienvenu enviou a Alberto II, rei dos Belgas, um apelo escrito, onde lhe “explicou” as suas opiniões contra Tintin no Congo, a propósito da visita oficial do monarca a este país durante as comemorações dos 50 anos da sua independência. E terminou a sua carta, desejando que não lhe ofereçam um quadro, como é costume fazer em Kinshasa em relação a cada personalidade belga que chega ao Congo, sobre o qual seria provavelmente inscrito o título “Alberto II no Congo”, em referência ao álbum “Tintin no Congo”. E o senhor Bienvenu garantiu aí ao soberano que tal não seria do gosto dos congoleses que, como ele, tudo fazem para que a adaga “antes da colonização igual a depois da colonização” seja apagada das suas memórias...
O destino revelou-se particularmente cruel para com o senhor Bienvenu. Os meios de comunicação social difundiram pelo mundo as imagens da oferta ao enviado especial do rei, o ministro belga da Defesa, Pieter De Krem, logo durante as negociações prévias da visita, de um belo quadro com a réplica da capa do “álbum maldito” e a temida inscrição: “Albert II au Congo”...
Tenho a certeza de que na face do senhor Bienvenu se vislumbrou um largo sorriso... amarelo!
Sem qualquer intenção de piada racista, entenda-se.
António Martinó de Azevedo Coutinho