António Martinó de Azevedo Coutinho
Há cerca de uns dois meses, tomei contacto com um pequeno livro, de pouco mais de 100 páginas, intitulado O Ensino do Português. Agora já o vi, disponível, junto às caixas dos supermercados, mesmo à mão de semear, pronto a levar para casa com o pão, a fruta ou uma embalagem de peixe congelado. Aconselho-o.
Quando tive acesso ao livro, li-o de um fôlego. Sempre me interessaram as questões da Língua e, por inerência, as da sua aprendizagem, da sua prática quotidiana e, quando tal se impõe, da sua defesa. Não fui, impunemente, professor das primeiras letras e, sobretudo, nunca reneguei ou esqueci os excelentes professores de Português e de Literatura que aqui tive, como Jaime Belém, Firmino Crespo e Francisco Barrocas, para citar apenas os melhores.
Depois, a minha vida profissional e os meus interesses viraram-se para a íntima vocação entretanto quase perdida nos vendavais da vida, a dos desenhos. E embora tenha então assimilado, com alguma largueza de vistas, que uma imagem pode valer por mil palavras, aceito na mesma linha lógica que também uma palavra pode valer por mil imagens.
Voltemos ao livro. A sua autora vale pelo passado profissional, pela experiência, pela frontalidade, pelo desassombro, pela coerência. Maria do Carmo Vieira fala-nos do ensino da Língua e mostra-nos o caminho de perdição que vimos trilhando, de há muito a esta parte, até à queda final no abismo, próxima e inevitável, se não invertermos, bem depressa, a fatídica e acelerada marcha. Um profeta bíblico não falaria, com avisos mais aterradores, dos apocalipses linguísticos que ameaçam a lusa gente...
Nada, afinal, que os mais avisados não tivessem igualmente previsto, ainda que de forma intituiva, em versão mais suave. As sucessivas mudanças e alterações programáticas e curriculares que as altas competências ministeriais indígenas nos têm disponibilizado não poderiam conduzir a um diverso e menos fatal destino. Os facilitismos e as aberrações ali introduzidos foram quase sempre orientados no sentido de apenas proporcionar estatísticas de um ilusório sucesso. Porém, o texto de Maria do Carmo Vieira não se limita a ser politicamente incorrecto; é também corporativamente pouco conveniente. Por outras palavras, tanto bate no sistema como nos professores.
Basta atentar numa citação (de Danièle Sallenave, em À qui sert la littérature): “Se saber não é suficiente para ensinar, não saber impede absolutamente de ensinar”, para se dispor da certeza de que a autora coloca o dedo na ferida e deixa esta a sangrar...
Talvez deva corrigir. A autora, quando cita a impreparação científica e didáctica de muitos colegas, põe o dedo -apenas- numa das feridas da nossa escola... Há muitas outras, que transformaram o ensino na chaga viva hoje patente, quase a gangrenar, perto do ponto de não-retorno.
Nos domínios da Língua Pátria (até me custa aplicar aqui o termo Pátria!), pensava -na minha inocência- que a famigerada TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) tinha acabado por acordar defunta ou por ter caído em desigual combate. Não, fiquei agora a sabê-lo com surpresa, não só não morreu (ou se suicidou) como lhe competia se tivesse alguma vergonha, como está ainda viva e continua a impor-se, apesar das prudentes e avisadas vozes que contra ela clamavam e clamam, no deserto...
A TLEBS e o Acordo Ortográfico acabarão por destruir, sem honra nem remédio, um dos nossos patrimónios mais duráveis e mais respeitáveis. Precisamente aquele que um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, terá um dia destacado, quando deixou isso bem patente num fragmento do seu Livro do Desassossego: “Minha pátria é a língua portuguesa”.
Afinal, bem vistas as coisas, o único arremedo patriótico que inflamou os portugueses nestas últimas décadas (talvez até desde o ultimatum?!) foi protagonizado por um meio-estrangeiro, de nome Scolari, que colocou meio país de bandeirinha verde-rubra na mão, em nome da “sagrada” causa dos futebóis...
Quem se bateria assim pela causa da Língua Pátria? Bem temos assistido, ultimamente, aos baldados esforços de alguns resistentes contra o famigerado Acordo Ortográfico. Por mim, a este nível, a decisão está tomada: escreverei sempre como me ensinaram. Se necessário, refugiar-me-ei na clandestinidade, limitando mesmo o amor pela escrita às páginas de um diário íntimo, talvez a título póstumo, se os meus textos forem proibidos de circular publicamente por um iluminado e todo poderoso Big Brother das Letras, cada vez mais provável.
Isso cumpriria o respeito mínimo que devo à minha Pátria, enquanto Língua, que devo aos meus saudosos mestres e que devo a mim próprio, enquanto ser pensante e por enquanto livre.
Voltarei ao tema.
António Martinó de Azevedo Coutinho
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home