António Martinó de Azevedo Coutinho
A
deturpação do uso da palavra atingiu níveis que apeteceria considerar como
anedóticos se não fôssem preocupantes.
Por
exemplo, é frequente participarmos em conversações telefónicas para
determinados gabinetes ou repartições, recheados de gente normalmente
importante, recebendo no entanto respostas desconcertantes. Um exemplo,
virtual, permite avaliar um certo modelo-tipo:
Alternativa
A
- Desejo falar com o dr. X.
- O senhor dr. não se encontra. (Poderemos
admitir que o dr. X, coitado, está de tal modo perturbado que não consegue
reencontrar o seu equilíbrio ou, então, que anda todo o pessoal a vasculhar o
prédio, das casas de banho às arrecadações, do sótão à cave, sem encontrar o
pobre do dr. X, certamente perdido... É que, antigamente, em bom português, era
costume responder: - O senhor dr. não
está.)
Alternativa
B
- Desejo falar com o dr. X.
- Quem gostaria...? (Aqui, para
respondermos “à letra”, devemos dizer: - Com
ele, naturalmente... A secretária
ficará certamente desconcertada, incapaz de perceber que a pergunta certa, em
bom português, teria sido: - Quem devo
anunciar?)
Espécie
de teatro do absurdo (talvez Ionesco o subscrevesse!), os diálogos surrealistas
que o banal quotidiano nos proporciona constituem a prova de que um
cretiníssimo novo-riquismo ou a mais pura estupidez se terão apoderado da
simplicidade linguística que sempre usáramos com proveito e eficácia.
Quando
lemos num jornal (ou ouvimos na rádio ou assistimos pela televisão)
reportagens, entrevistas ou declarações, nunca teremos a certeza absoluta de
dispormos -como receptores- dos mesmos códigos linguísticos dos emissores
dessas peças, isto é, poderemos interpretá-las de modo bem diverso das
intenções dos autores dessas mensagens. Este fenómeno comunicacional até seria
normal (e saudável!) se o conseguíssemos desligar da deliberada demagogia que por
vezes informa tais peças.
Eis
alguns exemplos soltos:
- É preciso democratizar (ou privatizar) certos meios de comunicação. O princípio é provavelmente correcto,
se a oculta intenção do decisor não consistir em entregá-los a gente da sua
confiança...
- Temos de dialogar com todos os sectores da
sociedade. Nada mais desejável, excepto se “todos os sectores da sociedade”
se reduzirem às pessoas ou entidades que lêem pela nossa cartilha...
- Devemos lutar pelos nossos direitos. Por
vezes, o significado deste lema pode ser: Sentimo-nos
autorizados a obstruir ruas, incendiar autocarros, partir montras e invadir
reitorias...
- Este governo é verdadeiramente fascista.
Algumas vezes, esta “acusação” pode traduzir-se assim: Não nos deixaram destruir as cabinas telefónicas ou arrancar os
semáforos, nem sequer pintar as paredes e até mandaram gorilas para nos
agredirem, imagine-se!
- Verificou-se uma total adesão à greve.
Pode significar: Estivemos presentes, com
cartazes, megafones e tudo, todos os membros da direcção do sindicato!
- Já foi nomeada uma comissão de inquérito.
Tradução (no geral) exacta: - Esqueçam-se
de que aquilo alguma vez aconteceu.
Palavras
loucas, orelhas moucas! Nem sempre é possível tornarmo-nos surdos voluntários,
quando uma certa revolta interior nos impede de tal fingimento.
Flutuando
entre a vulgar piroseira e o bacoco pretensionismo, saltam-nos à vista
-escritas ou soletradas- algumas barbaridades linguísticas.
Hoje,
por exemplo, quase ninguém recomenda a outrém que se concentre. A moda é dizer:
-Foca-te! Aliás, pode usar-se uma
variante, igualmente disparatada: - Focaliza-te!
Não
existe, pura e simplesmente, o verbo “colapsar”, mas o substantivo colapso,
que significa inibição repentina duma
função vital ou, em sentido figurado, queda
repentina. Tão simples como isto. No entanto, já todos lemos que
determinado edifício “colapsou” e, até, que a Bolsa também “colapsou”... Estas
aspas são da minha responsabilidade pois, nas notícias, nunca são colocadas.
Afirmar
que uma lei possui determinadas virtualidades consiste numa pura aberração
linguística, com a qual se diz exactamente o contrário daquilo que se
pretenderia sublinhar. Virtual é irreal e nada tem a ver com virtude,
que devia ser o termo a empregar.
Deslocalizar por deslocar, resiliente por resistente
ou, mais frequentemente, estória por história, eis outros casos
de imbecilidade vocabular com que esbarramos em cada página, a cada cena...
Tudo
isto acontece no dia-a-dia mais vulgar, porque é escolhido deliberadamente o
caminho da asneira, quando se pretende o da erudição. Enfim, haja pachorra!!!
Sophia
de Melo Breyner Andresen (1919-2004) foi uma das nossas maiores poetisas. O Prémio Camões, que lhe foi justamente
atribuído em 1999, consagrou uma obra invulgar em génio, coragem e inspiração.
Do seu livro O Nome das Coisas
(1977), retiro, com vénia, o poema Com
Fúria e Raiva, datado de Junho de 1974.
Com fúria e
raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Com esta transcrição, calo por enquanto as Palavras à Solta...
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Com esta transcrição, calo por enquanto as Palavras à Solta...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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