António Martinó de Azevedo Coutinho
I - a falar é
que a gente se entende...
Há pelo menos dois tipos de ditados populares: os que sobreviveram à corrosão dos tempos e dos costumes e os que ficaram pelo caminho. Se preferirmos uma classificação mais moderna, poderiam ser denominados, respectivamente, como “constitucionais” e “anticonstitucionais”. Sim, porque a política também interfere nesta distinção.
A falar é que a gente se entende é um antigo provérbio que, em numerosa companhia,
fica hoje na terra-de-ninguém, entre as trincheiras onde se abrigam os dois
grupos devidamente classificados. A razão é simples: mesmo falando nem sempre
nos entendemos... Portanto, podemos incluir este ditado (ou provérbio) numa
zona vagamente indefinida, ao alcance dos tiroteios verbais.
A verdade é que,
quando esteve em pleno vigor, esta máxima dispunha de um valor absoluto. A
palavra era, então, um penhor de honra. Dispensavam-se os papéis, onde a
palavra escrita seria atestada, certificada e aparentemente garantida; a
palavra oral era mais do que suficiente. Ficaram na memória das antigas
crónicas dos negócios, aqui mesmo em Portalegre, o aperto de mão e a palavra
dada como forma de selar, de modo quase sagrado, toda e qualquer transacção ou
compromisso entre as gentes dos campos ou as da cidade.
Vieram-me estas coisas à lembrança por causa duma recente crónica semanal de amigo, que leio (também o vejo e oiço) sempre com prazer e proveito. Trata-se da secção Gurus, assinada pelo João Adelino Faria no suplemento/caderno Dinheiro Vivo, inserido no Diário de Notícias dos sábados. Intitulou-se tal crónica Focados e Estruturantes. Já ninguém morre. Todos falecem. O novo-riquismo da linguagem deixou os portugueses doentes.
Entre os
diversos e curiosos exemplos do nosso quotidiano que o jornalista nos recorda,
o humor roça a indignação. Vale a pena ler o texto, onde se mostra como o
ridículo, na nossa linguagem corrente, se vem tornando norma, funesta e
insensível. E, pior do que isso, vai-nos fazendo correr o risco de perdermos o
verdadeiro significado e valor daquilo que todos chamamos de bom português. Com
este sério aviso, João Adelino Faria conclui a sua pertinente crónica do
passado dia 5 de Maio.
A falar, de
facto, a gente vai-se entendendo cada vez pior...
Não vale a pena
citar por ora qualquer dos casos abordados na referido texto. Há um outro que
particularmente me agride, e oiço-o constantemente, na boca de locutores, de
sindicalistas, de políticos e de outros “profissionais” similares, tudo gente
que devia escolher com cuidado e rigor a terminologia que usa em público.
Trata-se da palavra aderência, usada
em vez de adesão. A confusão,
peganhosa, entre duas palavras completamente distintas no seu significado e na
lógica do seu uso, faz-me pensar que deixámos de exercer qualquer espírito
crítico (e até pedagógico) na escolha dos termos utilizados na comunicação.
Aderência e
adesão são palavras arbitrariamente
tomadas como sinónimos, talvez porque ambas exprimem uma ideia de ligação. Mas
o primeiro vocábulo só deve ser usado quanto a coisas ou substâncias
inanimadas, enquanto o segundo é próprio de pessoas vivas, distinguindo-se
claramente os respectivos contextos.
A adesão a um partido político, a um
sindicato ou a um clube desportivo, a uma doutrina religiosa ou a uma espiritual
norma de vida é própria dos homens; a aderência
do pneu ao piso da estrada, da sujidade à pele, do pó aos móveis, da pastilha
elástica aos pavimentos ou da fita-cola ao papel é própria de matérias.
Enquanto a adesão é voluntária,
motivada, assumida e aprovada, mantendo-se de forma mais ou menos permanente, a
aderência é meramente precária,
concreta, apenas material e não definitiva.
Tudo isto é -ou
deveria ser- óbvio, mas não é tido como tal. Entre nós a asneira campeia e faz
lei...
A diferença a
que João Adelino Faria alude no próprio título da sua crónica, ao distinguir as
pessoas que hoje falecem daquelas que ontem morriam, também pode evocar as
respectivas causas. É que ontem as pessoas morriam,
sobretudo, com uma “nascença” ou com
um “ar que lhes dava”; hoje elas falecem de cancro ou de AVC.
Talvez eu não
esteja a ser suficientemente rigoroso naquela nomenclatura, pois, para ser mais
fiel aos actuais relatos necrológicos, deverei dizer: um dos males que hoje
mais atinge a Humanidade e constitui frequente causa de falecimento é, como se
sabe, a “doença prolongada”...
A palavra, essa
sim, está doente. Contaminámo-la nós todos, pelo pedantismo com que os tempos
modernos carregam o nosso discurso bacoco, barroco, e muitas vezes de todo oco
de significado autêntico e sincero. A simplicidade linguística, mesmo
dispensando os absurdos acordos ditos ortográficos, vai-se perdendo sem remédio
à vista.
As palavras e o
seu sentido mais puro e mais nobre vão sendo uma saudade. Não disse um dia
Fernando Pessoa que a sua Pátria era a Língua Portuguesa?
Mas isso foi há
quantos séculos? Ou milénios?
António Martinó de Azevedo Coutinho
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