António Martinó de Azevedo Coutinho
V – a bom
entendedor, meia palavra basta
Evoquei George
Orwell, um autor lido desde a juventude que sempre me impressionou. A sua obra
máxima, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro,
publicada em 1948, constitui um implacável libelo contra a opressão, sobretudo
a intelectual. Não se justifica aqui
resumir o livro, aliás sobejamente conhecido, mas referir o sistema
linguístico, a Novilíngua, que deriva
da filosofia do poder ditatorial e constitui uma das suas principais armas, em
tenebrosa trama genialmente elaborada pelo autor.
A maquiavélica
estrutura gramatical amplamente descrita por Orwell parece premonitória quanto
aos processos usados por alguns detentores do poder político, quando empregam
palavras para sobre estas instalarem a sua força. Basta recordar alguns simples
exemplos, entre nós recentes, para percebermos como a ficção se torna
realidade.
Lembremos o
episódio do “desvio colossal” e da fantástica “explicação” sobre ele fornecida
pelo ministro Vítor Gaspar; evoquemos a forma ardilosa como o “temporário”
confisco dos subsídios se tornou “definitivo”; tentemos perceber o verdadeiro
significado de ambíguas expressões como “ajustamento estrutural excepcional”,
“restituição intensa”, “libertação de mão-de-obra”, “crescimento negativo da
economia”, “diminuição positiva da pobreza”, “abrandamento do crescimento da
despesa”... Mil exemplos se poderiam aqui reproduzir no sentido de entendermos
claramente que, perante este quadro, talvez Orwell não passasse de um banal
aprendiz da sua própria estrutura novolinguística...
Recordemos,
para melhor compreendermos o processo, as próprias palavras do autor: “Saber
e não saber, ter consciência da completa veracidade ao exprimir mentiras
cuidadosamente arquitectadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas,
sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica
contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na
impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia;
esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente
no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o
próprio processo ao processo. Essa era a subtileza derradeira: induzir
conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do acto de
hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra
‘duplipensar’ era necessário usar o duplipensar.”
Duplipensar – Segundo Orwell, esta atitude implica a denominada
duplicidade de pensamento, quando sabemos perfeitamente o que está errado e nos
auto-convencemos de que está certo. Assim, o cérebro humano ganha a capacidade
de guardar simultaneamente duas crenças contraditórias e acata ambas.
É à luz desta
filosofia de comportamentos que poderemos “compreender” (e aceitar!?) como
melhoraremos a economia acelerando os despedimentos; como deveremos empobrecer
o País para que este saia da crise; como seremos mais cultos na medida em que
mais escolas ou bibliotecas encerrarmos; como aumentaremos a nossa mobilidade
portajando as estradas ou fechando as vias férreas; como resolveremos os
esbanjamentos autárquicos eliminando freguesias; como equilibraremos o défice
extinguindo (provisoriamente!?) feriados; como seremos mais prósperos abatendo
barcos e tractores; como ficaremos mais saudáveis fechando hospitais; enfim, como
viveremos mais felizes, encarando a austeridade como uma incontornável bênção
imposta por outros.
Neste sistema
político a palavra dispõe dum significativo papel. É pela lógica da palavra,
quase sempre serena, que tudo se explica, mesmo o inatingível, que tudo se
afigura lógico, mesmo o absurdo, que tudo se aproxima da facilidade, mesmo o
impossível. Dizer hoje uma coisa e logo o seu contrário, cumprir hoje uma
função e logo a rejeitar, formular hoje um compromisso e logo o contradizer,
tudo é assumido em nome da inabalável certeza da infalibilidade.
Há pouco
mentiam-nos, agora iludem-nos; não tenho certezas quanto à vantagem de um
processo sobre o outro, quando ambos são gravosos e ofensivos para com a nossa
dignidade.
Fiódor
Dostoiévski (1821-1881), o grande escritor russo, nos seus Escritos
Ocasionais, disse a este propósito: “Uma grande parte da infelicidade no mundo tem sido causada por
confusão e fracasso de se dizer a palavra certa no momento certo. Uma palavra
que não é proferida no momento certo é prejudicial, e tem sido sempre assim.
Porque é que uma classe da população deveria ter medo de ser honesta com outra?
De que é que têm medo?”
Por mim, sinto fazer aquilo que posso, aquilo que devo: exercer o meu
modesto poder da palavra contra a poderosa palavra do poder.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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