António Martinó de Azevedo Coutinho
IV – a palavra foi
dada ao homem para servir o seu pensamento
A questão da
palavra, colectivamente trabalhada pelos partidos políticos, não se esgota
neste particular, embora interessante.
Retoma-se, por
isso, a pertinente crítica de João Adelino Faria que suscitou estas reflexões.
A sociedade civil actual, dando conta duma lenta evolução (!?) semântica, criou
e usa hoje um sistema linguístico diverso daquele que aprendeu, pela subtil
introdução de novos termos vocabulares e, sobretudo, pela alteração dos
significados tradicionais que eram atribuídos a certas palavras. Já disto
apreciámos antes alguns curiosos exemplos. Mas não devemos ficar por aí.
São quase
infindáveis os campos sociais onde se verificam consideráveis e por vezes
confusas mudanças na terminologia “corrente”. Nos domínios informáticos, onde
este texto foi produzido e onde está a ser exibido, parece ter entrado no seu
léxico específico um conjunto de cretinices vocabulares importadas ou adpatadas
à pressa sem qualquer sentido crítico, até porque existem na nossa língua
termos perfeitamente adequados a cada situação “renomeada”. Printar em vez de imprimir, deletar por apagar ou save por troca com gravar
são apenas alguns exemplos gritantes desta informatizada confusão mental. Mailar ou googlar pretendem ser formas verbais aplicadas com inteira
propriedade quando alguém envia correio ou pesquisa através do seu computador.
O anglicismo site tomou, quase de
vez, o lugar do portuguesíssimo sítio...
O mesmo se passa com link “versus” ligação e fones em vez de auscultadores.
A nossa língua é
demasiado analítica perante o sintético idioma inglês? E isso, só por si,
explica o nosso conformismo, a nossa passiva subserviência vocabular? Teremos
receio de passar por “totós”?
Encaremos agora
outra família de disparates, estes de um foro menos especializado, mais comum.
Talvez tudo
tenha começado nos Estados Unidos, onde as preocupações de adocicar o racismo
latente produziram a invenção das designações afro-americanos ou hispânicos
para denominar os negros ou os mexicanos, cubanos e outros originários latinos.
Na mesma lógica,
nós agora chamamos empregadas domésticas
ou auxiliares de apoio doméstico às
criadas de servir; auxiliares de acção
educativa ou agentes operativos
aos contínuos; os caixeiros viajantes de medicamentos chamam-se modernamente delegados de informação médica; os
caixeiros das lojas passaram a técnicos
de vendas; os bandos étnicos são grupos
de jovens; os operários e outros funcionários denominam-se, nesta revisão
do léxico comum, colaboradores; as
crianças irrequietas, com “bichos carpinteiros” (como antigamente dizíamos),
passaram a sofrer de comportamento
disfuncional hiperactivo; os cábulas assumidos devem ser tratados como alunos de desenvolvimento instável; os
gordos e os magros são pessoas atingidas por uma disfunção
alimentar; os afectados por mongolismo sofrem, afinal, de síndroma do cromossoma 21; as mães
solteiras inserem-se numa família
monoparental; quem assume o aborto permite a interrupção voluntária da gravidez; os cegos são, afinal, invisuais, mas não denominamos os surdos
de “inauditivos” nem os paralíticos de “inmovimentáveis”; os débeis mentais já
têm sido classificados como indivíduos
com atitude não vinculativa... Talvez, nesta linha, depressa se
classifiquem os anões como cidadãos
verticalmente desfavorecidos ou os grandes obesos como seres horizontalmente beneficiados... Talvez!
Estes disfarces
da realidade, (provavelmente?) consagrados em nome de piedosas intenções de
igualdade, na maior parte dos casos nada resolvem no campo da autêntica
inserção ou reabilitação social, assim como na luta contra as discriminações.
As fábricas são unidades produtivas; a chaga social do
analfabetismo nacional desapareceu ao dar lugar à iletracia; os maus alunos já não “chumbam”, ficando apenas retidos; as “discriminatórias” 1.ª e 2ª
classes nos comboios sobreviventes denominam-se agora respectivamente, em
muitos casos, Conforto e Turística e por aí fora, pouca-terra,
pouca-terra e também pouco senso, pouco senso...
O novo-riquismo
que parece ter dado a volta ao nosso léxico habitual assume diversas
combinatórias onde a única regra perceptível é de fugir a sete pés de toda a
lógica assente na tradição linguística. O próprio corporativismo parece
ressuscitado quando se empregam, com ar pretensamente sério, expressões
classificativas como “gramatiquês”, “eduquês”, “economês”, “futebolês” e
outras, muito mais num sentido globalizador do que crítico ou sistémico.
Este linguajar,
que tem vinda a tomar o lugar da linguagem, constitui uma ameaça a que poucos parecem dedicar alguma atenção.
Trata-se de um
autêntico círculo vicioso para o qual George Orwell (o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, O Triunfo dos Porcos e outras obras
notáveis) atempadamente nos avisou, quando disse: “Se as ideias corrompem a língua, a língua também corrompe as ideias.”
O enriquecimento
-e nunca a destruição ou o abastardamento- do vocabulário não serve apenas para
falar “bonito”; serve sobretudo para pensar “direito”.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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