António Martinó de Azevedo Coutinho
Não quero
invadir, de modo algum, os terrenos que o amigo Luís Filipe Meira neste blog percorre, com uma autoridade pela
qual manifesto o maior respeito. O que aqui pretendo deixar é, apenas, a
partilha de umas páginas de memórias pessoais, onde a música constitui o
denominador comum.
Sou, perante a
arte dos sons, um autêntico especialista de ideias gerais, isto é, gosto intuitivamente
de géneros, temáticas ou intérpretes tão diversos que em nada me distingo de um
simples e vulgar amador da música. Esta “brilhante” confissão abarca um
impressionante universo, que vai das sinfonias clássicas ao popular folclore,
das faixas ditas de intervenção ao fado castiço, de (algumas) interpretações
electrónicas às árias de ópera, da música militar ao mais étnico “exotismo”...
Tenho, como é óbvio, as minhas predilecções, mas seria tão extensa a sua lista
que certamente se tornaria injusta pelas omissões cometidas. Pronto, estou devidamente
apresentado.
Há mais de
trinta anos, frequentei em Évora um curso de animação cultural, virado
sobretudo para a intervenção em museus e outros espaços artísticos. Um dos meus
companheiros lagóias foi o Aurélio Bentes que certo dia, como fundo musical
para um trabalho colectivo em que então nos empenhávamos, propôs uma faixa de
um grupo alemão do qual nunca eu tinha ouvido falar, os Kraftwerk. Essa interpretação, denominada Trans-Europe Express, constituiu para mim uma verdadeira revelação,
surgindo perante a minha sensibilidade como uma música inspirada, feita de sons
electronicamente sintetizados que desempenhavam uma perfeitíssima função
onomatopaica e dominavam uma melodia repetitiva, quase minimalista mas convincente
e rigorosa, no contexto de uma letra eficaz, embora reduzida ao mínimo
essencial.
Fiquei tão
vivamente impressionado que uma das tarefas pessoais posteriores consistiu na
prioritária pesquisa de informação sobre aquela banda musical alemã, com origem
em Düsseldorf. Aprendi então tanto quanto me foi possível sobre o seu
pioneirismo, sobretudo a partir de 1974, ano de apogeu, o qual se manteve
apesar de uma discreta e prolongada presença-ausência, praticada nos últimos
anos do século XX. Ao mesmo tempo, tentava compensar a minha anterior falha de
conhecimento, com a aquisição dos álbuns do grupo que tinha até então ignorado.
Posso acrescentar que algumas então modernas
“ideologias” musicais -dos house
aos techno- nenhum interesse em mim
tinham até aí despertado, pelo que as criações dos Kraftwerk, à medida que as ia descobrindo e apreciando,
constituiram a prova de que as tecnologias electrónicas também podem assumir-se,
afinal, como extensões quase naturais da criatividade humana nos domínios
sonoros.
Já não posso
recordar, com rigor, qual a ordem pela qual fui conseguindo organizar a
colecção desses CD’s, mas juntei Man-Machine, Trans-Europe Express (o tal!), Radio-Activity,
Autobahn e Showroom Dummies (uma colectânea).
Entre 2000 e
2002, a pretexto da intervenção num festival internacional de Cinema de
Ambiente, o EcoMove, desloquei-me por
diversas vezes a Berlim. Entretanto, por uma feliz coincidência, os Kraftwerk tinham “acordado” da sua
letargia, tendo composto o hino oficial da Expo
Hannover 2000. Consegui então, nas discotecas alemãs, completar a
totalidade dos registos do grupo, adquirindo títulos como Electric Café, Computer World,
The Mix, Tour de France e o novíssimo Expo
2000. Já em Portugal, conseguiria depois o Tour de France – Soundtracks.
A banda entrara
em novo e curto período de “hibernação” até uma digressão que a levaria, com
pleno êxito, aos quatro cantos do Mundo. Dessa triunfal jornada, vivida em 2004
e incluindo Portugal, resultariam no ano seguinte um CD e um DVD notáveis,
onde foi recapitulada a longa série das suas mais populares interpretações: Minimum-Maximum.
Parecia ter
ficado por aqui a carreira dos veteranos músicos alemães, com elenco entretanto
alterado por diversas vezes, até que, muito recentemente, neste último Abril, aconteceu
uma nova “ressurreição”.
Esta pode
considerar-se como a autêntica consagração de uma vida e de uma obra. Como
efeito, parece ter sido a primeira vez que um dos mais prestigiados museus
mundiais, o MoMA (Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque) abriu as suas portas a um concerto musical deste tipo.
Conheço o belo espaço artístico, embora não o considere ao nível de outros
similares como, para citar apenas os que já visitei nos EUA, o Metropolitan,
também de NY, e sobretudo o impressionante conjunto museológico do Smithsonian Institut, em Washington.
Talvez isto aconteça porque não sou um incondicional apreciador do design, que é o “forte” do MoMA, pois até recordo a emoção pessoal
provocada pelo encontro com algumas obras originais de Vincent van Gogh, Marc
Chagall, Paul Cézanne ou Pablo Picasso -sobretudo destes génios da pintura- que
ali se encontram, entre muitas outras.
Voltando aos Kraftwerk, a sua perfomance audiovisual foi apresentada em oito dias consecutivos,
segundo uma retrospectiva dedicada aos álbuns fundamentais do grupo. Posso
imaginar o vasto átrio do museu, dotado de um impressionante pé-direito, cheio
de gente vibrando ao ritmo do poderoso som electrónico e à frenética sucessão
das imagens projectadas em 3 dimensões.
O sucesso,
segundo as críticas mais exigentes, foi total. E isso deixou-me outra
consoladora confirmação, a de que a faixa entre todas minha favorita, Trans-Europe Express (na sua versão de
1977), fora considerada como o mais lendário e notável de todos os registos dos
Kraftwerk, nos “tops” da história do hip-hop e da música electro e techno.
Afinal, também
aqui, não há amor como o primeiro. Este comboio-expresso, talvez um TGV, percorreu comigo uma longa tirada,
sentimental, entre Évora, Berlim e Nova Iorque, recapitulando nestas etapas
alguns inesquecíveis capítulos da minha própria vida.
E agora fico
atento ao prometido novo álbum dos
Kraftwerk (talvez o derradeiro), previsto para os finais deste ano.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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