António Martinó de Azevedo Coutinho
REALidades Três
Conclui-se hoje
a rápida abordagem à entrevista do filósofo Miguel Real, dirigida pela
jornalista Catarina Pires e publicada em Notícias
Magazine n.º 1039, 22 de Abril de 2012.
Perto do final
das suas declarações, Miguel Real sublinha e explicita o seu pensamento
crítico:
“Vou repetir-me: os que procuram a política
são os piores de nós. Depois do Cunhal, do Soares, do Sá Carneiro e do Freitas
do Amaral, nenhum dos governantes que tivemos ficará na história. Não sei se
eles têm noção disso, mas qualquer historiador sabe que o Sócrates ou o Cavaco
Silva não têm a mínima hipótese de ficar na história, nem no rodapé. Fazem
lembrar os políticos do Rotativismo, no final do século XIX, ou da Primeira
República após 1920, nenhum ficou na história, nem Luciano de Castro, o homem
mais importante de Portugal no seu tempo. A minha grande dúvida, e para essa
não tenho resposta, é porque é que só os piores procuram a política e há trinta
anos que não aparece um novo valor.” (...) “E mais, repare numa coisa que faz doer o coração: nenhum desses
indivíduos -Sócrates, Passos Coelho, Cavaco Silva e por aí fora- tem currículo
fora da política. O professor Cavaco Silva nunca criou um emprego, nunca teve
uma empresa, nunca produziu nada, assim como o Passos Coelho ou o Sócrates,
viveram todos à sombra do Estado e chegaram onde chegaram à custa do partido,
que se confunde com o Estado. Imagine o professor Cavaco Silva se não tivesse
ascendido ao poder. Seria um cinzento professor de Finanças Públicas, faria a
sua sebenta, educaria os seus filhos, a sua senhora seria professora de Inglês
no liceu, não teria exposição pública alguma, não teria microfones à sua boca
na expectativa de uma grande revelação que acaba invariavelmente em frases
ocas. Há gente com exposição pública por mérito, nas mais diversas áreas, mas
qual é o mérito de um político, hoje?”
Miguel Real pode
parecer impiedoso, mas creio que é, apenas, justo.
O carreirismo
político da imensa maioria dos nossos responsáveis (!?) governamentais
retirou-lhes credibilidade e, a muitos deles, alguma dignidade. A detenção do
poder, ainda que atingida por via democrática, é -ou foi- imerecida, em função
da sua mediocridade, da sua flagrante incompetência.
Quando li as
declarações de Miguel Real associei-lhes de imediato um texto de Adriano
Moreira, divulgado no Público em
Julho do passado ano.
Nesse artigo -O Relativismo e a Decadência- o autor
constrói uma inteligente crítica a determinadas formas de governação (como a por
nós agora sofrida) que parecem ter como norma o maquiavélico princípio
classicamente denunciado por Óscar Wilde: “Um
cínico é um homem que sabe o preço de todas as coisas mas não sabe o valor de
nada.”
E Adriano
Moreira fornece disto flagrantes exemplos: “A esta percepção responde, em parte, o estado social,
já que sem um poder governativo humanista a comunidade não pode funcionar com
justiça. Nessa formulação cabe necessariamente o reconhecimento de que, não
obstante, no que respeita às pessoas, a convergência de valores humanos e dos
valores instrumentais é uma regra frequente. É notado que, se a saúde é suporte
do valor essencial da vida, os cuidados médicos e medicamentos são coisas com
valor monetário. O mesmo se diga do ensino, da qualificação técnica, e assim
por diante. Esta realidade faz com que o Estado social seja composto, ao longo
dos tempos, de uma principiologia que aponta para a possibilidade, variável com
as épocas, de apoiar com valores monetários a dignidade humana, mantendo sempre
a principiologia. Existem outras formas de apoiar aquela dignidade sem valores
monetários que porventura escasseiam, como o serviço ao próximo, a
solidariedade, a caridade, o amor oferecido com a gratuidade da doação.”
Alguns dos nossos actuais
governantes, e outros dirigentes, só sabem funcionar com modelos matemáticos e
certas bases estatísticas, que os levam a encarar cada cidadão como um simples número.
Os seus corações assemelham-se a uma máquina calculadora e os seus cérebros
parecem exclusivamente formatados em termos de preços e custos, ignorando qualquer
noção, mínima, de humanismo. Autênticos robots
mecânicos, alguns parecem até funcionar com as suas baterias quase extintas,
afectados no pensamento e na própria expressão oral. Enquanto se privilegiar o
preço e os custos da saúde, da educação, da cultura, da justiça ou do trabalho
em detrimento dos valores supremos da vida humana e do progresso comum,
enquanto esta inversão for cartilha política de quem nos (des)governa, a luta
pela esperança num futuro de dignidade tem de constituir uma actuante e permanente
militância em cada um de nós.
Não podemos transformar-nos num país
exclusivamente povoado por inspectores de impostos, cobradores de portagens,
agentes da ASAE, auditores de contas,
polícias caceteiros, fiscais do estacionamento, executores de hipotecas e
caçadores de multas. Já se extinguiu a normal gente lusitana, de que tanto nos
orgulhámos, nos tempos em que se estudava a História Pátria?
Em nome de tudo isto aprecio o
desassombro, mesmo quando apaixonado, de Miguel Real.
E prometo voltar a ele.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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