António Martinó de Azevedo Coutinho
É TUDO IGUAL AO LITRO!
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Provavelmente, a Volta à França é uma das mais populares provas desportivas de todo o Mundo. Talvez apenas a Maratona de Nova Iorque possa rivalizar com aquela em participação popular, sobretudo no que respeita à incontável assistência que se desenrola, ao vivo, pelas avenidas e parques da cidade. Mas a maratona é uma prova única, longa, é certo, porém com uma curta duração.
Já a Volta à França dura umas três semanas, havendo etapas que se desenvolvem ao longo de horas e de subidas quase intermináveis. Depois há a incrível potencialização, mundial, que as sucessivas transmissões directas, quotidianas e integrais, lhe proporcionam.
Ao trazer aqui este tema, actualíssimo, nem sequer pretendo escrever sobre desporto, seja ele a corrida maratona ou o pedalado ciclismo. O meu propósito é muito mais simples; pretendo aludir à consagração pública da pedagogia da asneira, citar um caso flagrante de difusão maciça da “batota” científica, reprovar uma repetitiva e enganosa campanha informativa.
Antigamente era assim: qualquer aluno médio da escolaridade primária (hoje diz-se: 1.º ciclo do Ensino Básico) sabia distinguir claramente as notações usadas nas medidas de tempo e nas medidas de ângulo plano. Portanto, embora tratando-se em ambos os casos de sistemas de números ditos complexos, um vulgaríssimo menino ou menina de dez anos de idade sabia ler e escrever tantas horas, tantos minutos e tantos segundo, obviamente relativos a tempo, assim como tantos graus, tantos minutos e tantos segundos, obviamente relativos a ângulos.
Os números ditos complexos eram aqueles que escapavam à relação decimal, usada, entre nós, em quase todos os vulgares sistemas de medidas: comprimento, massa, capacidade, volume, superfície, etc. Era assim nos tempos, talvez “atrasados”, em que todos aprendíamos (e decorávamos!) a tabuada, a ortografia, fórmulas e algumas datas, os nomes de batalhas, reis, serras e rios e outras impertinentes regras ou séries, hoje consideradas perfeitamente dispensáveis. Com os “brilhantes” resultados à vista...
Ora voltando aos tais números complexos, o grande problema que eles nos criavam nem sequer era o de os escrever ou ler, mas sim os de lidar aritmeticamente com eles. Uma simples operação de adicionar e subtrair números complexos, ou de os multiplicar e dividir por um número inteiro, isso transformava-se quase sempre num caso deveras complicado. Era aí que percebíamos claramente a sua complexidade... Mas, normalmente, com maior ou menor aplicação, também dávamos conta desse recado.
A presente questão é esta: sempre que um ciclista ou um grupo de ciclistas consegue destacar-se do pelotão, as vantagens temporais progressivamente ganhas (ou perdidas) são anotadas numa lousa, transportada por uma equipa de estafetas, de moto (tudo bem amarelo e devidamente carregado de publicidade bancária), a fim de que tais diferenças sejam comunicadas aos interessados, o(s) fugitivo(s) e os seus perseguidores. Esta mesma informação surge no canto superior esquerdo do monitor dos espectadores, no que respeita à respectiva transmissão televisiva, em directo.
Até aqui tudo parece, em pura teoria, simples e normal. Porém, o que na prática acontece, tanto na informação in loco como na transmitida por via TV, é que a notação utilizada para registar os minutos e os segundos da diferença temporal “corresponde” à exclusivamente dedicada às medidas de ângulos planos! Por outras palavras, quando se pretende escrever, por exemplo, 5min 12s, aquilo que ali surge estampado é 5´ 12´´.
Por razões que se prendem com a própria lógica das corridas, as diferenças (quase) nunca chegam a atingir a hora, o que obrigaria os anotadores a escrever, “logicamente”, 1o 2´ 9´´ e nunca 1h 2min 9s.
Isto não é confusão nem convenção; é pura e simples exibição pública de iletracia. Ainda por cima com o rótulo de oficial.
É claro que falta descartar uma hipótese “científica”, altamente improvável: a de que a informação seja mesmo fornecida em medidas de ângulo, isto é, que pretendam assinalar a diferença espacial, em minutos e segundos, correspondente a um ângulo virtual, com vértice em Paris, em cujos lados se situem os ciclistas. Como a descodificação de semelhante informação seria demasidamente “complexa”, com fórmulas, senos, cossenos, algoritmos, tabelas de logaritmos, orientação assistida por GPS e até ângulos horários relativos ao tempo solar verdadeiro, é mais conveniente admitir que os produtores de informação querem mesmo explicitar tempos...
A questão é portanto elementar, embora não pareça. As medidas de tempo derivam do movimento de rotação da Terra, enquanto as medidas de ângulo plano derivam da abertura dos seus respectivos lados. Tomando a duração temporal do dia, a sua divisão em 24 partes iguais tem a designação de hora (h), que por sua vez se reparte em 60 minutos (min), cada um destes correspondendo a 60 segundos (s). As medidas de ângulo plano partem do raso (ou de meia-volta), dividido espacialmente em 180 partes iguais, cada uma das quais é denominada grau (o). Cada grau subdivide-se em 60 minutos (´) e cada um destes em 60 segundos (´´).
Tudo isto está devidamente oficializado internacionalmente, sem margem para qualquer equívoco. O Sistema Internacional de Unidades (SI), desenvolvido em 1960, foi adoptado pela imensa maioria dos países mundiais, constituindo uma forma moderna do antigo sistema métrico. Consiste num conjunto sistematizado e padronizado de definições para unidades de medida, concebido em torno de sete unidades básicas e da conveniência do número dez.
O SI aceita várias outras unidades que não pertencem a este sistema organizado (de relação decimal) e é precisamente esta outra “família” que abrange as medidas de tempo e de ângulos planos, os argumentos logarítmicos, os ângulos hiperbólicos, etc. Confesso que não percebo nada destes últimos...
Mas de coisas de tempo e de ângulos planos, como qualquer aluno da antiga 4.º classe, sei o suficiente para me indignar com a pública e repetida ostentação destes disparates.
Orientar-se-ão os senhores do Tour por algum Accordo Arythmetico similar ao nosso Ortographico? Sendo assim, estão desculpados!
António Martinó de Azevedo Coutinho
Nota complementar – Sinto-me na necessidade, expedita, de referir algo que pode no texto ser interpretado, eventualmente, como uma repetida gralha. O símbolo correcto de minuto/tempo, ao contrário do que habitualmente encontramos escrito ou até utilizamos, é min e não m. A razão, simples, lógica e convincente, é a de se evitar o estabelecimento de qualquer possibilidade de confusão com m (metro) e, sobretudo, com m (mês).
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