António Martinó de Azevedo Coutinho
FAZÍAMOS GRANDES VIAGENS TODOS OS DIAS...
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“O comboio parara finalmente na estação de Portalegre. (...) Estava escuro e frio. Tapando-lhe a estação, havia outro comboio na primeira linha. Mas as carruagens ficavam tão altas que Rosa Maria desistiu de subir, assim carregada, e atravessar para o outro lado. Pôs-se a andar ao longo das carruagens. Soprava, a espaços, um vento seco e álgido, violento, contra o qual baixava a cabeça de lado, avançando a custo. (...) Acompanhando o homem, ladeou o comboio; achou-se em frente da estação. Uma luz vermelha tosquenejava triste no escuro; e dir-se-ia que ninguém mais saíra nessa estação deserta e lúgubre, perdida em distâncias que a Rosa Maria nem pareciam Portugal. Já através das vidraças, no comboio, ela entrevira estações semelhantes, com um edifício pobre esfumado na noite, e em que mal desciam dois ou três passageiros ao grito rouco, melancólico, atirado por um empregado que passava sacudindo a sua lanterna:
- Chança!
- Mata!
- Crato!
Isto ao cabo de longos intervalos em que ia fugindo uma paisagem árida, escalavrada, monótona, queimada do frio e escurecida não só do dia brumoso como de toda a tristeza de Rosa Maria.
Do outro lado da estação, a caminheta esboçava no escuro o seu grande vulto bojudo.”
Foi José Régio que escreveu estas linhas, no começo da sua novela Davam Grandes Passeios aos Domingos, publicada em 1941, passam agora precisamente setenta anos. “Novela com cidade dentro” lhe chamou um dia, com inteira propriedade, a escritora Luísa Dacosta.
Volto à estação de Portalegre. Talvez seja uma espécie de nostalgia, virtualmente próxima do seu inexorável destino, que me atrai. Ali, mesmo quando a electricidade ainda lhe era desconhecida, havia vida. Qualquer dia, provavelmente, ela será apenas mais um conjunto de ruínas, como tantas velhas casas de cantoneiros ou antigos postos fronteiriços da Guarda Fiscal, paredes esburacadas, memórias desprezadas, letreiros pendentes ou painéis de azulejos já ratados, que relembrarão para sempre antigas dignidades perdidas, caídas em desuso, arrasadas pelo tsunami chamado progresso. Progresso!?
Nem sequer vale a pena recordar aqui e agora a sua contraditória crónica. Cravada a mais de uma dezena de quilómetros da cidade, são incontáveis os esforços cívicos ou políticos, quase sempre quixotescos, que intentaram movê-la para Norte, tornando mais apropriado o seu nome de baptismo. Provavelmente, para fazer coincidir a designação com a implantação, teria sido mais cómodo e mais simples mudar-lhe o nome para: estação da Urra. Assim, até poderia ampliar-se, sem qualquer transtorno fonético, ou rítmico, a relação que Régio, passageiro frequente, imortalizou na sua novela: Chança, Mata, Crato, Urra!
A estrada que, em tempos recuados, ligava a cidade à “sua” estação, era ladeada por eucaliptos, alguns com cegonhas dentro. Parte desta estrada ganhava grande animação sempre que na Praça de Touros José Elias Martins havia corrida. Embora nunca tivesse apreciado tal tipo de espectáculos, lembro-me do intenso movimento que aquele troço apresentava em dias de tourada, sobretudo a partir das eras, mais modernas, do império automóvel. Antes, quando o homem ainda sabia usar convenientemente os seus meios naturais de locomoção, era longa e densa a fila humana que da cidade se deslocava uns dois quilómetros para Sul, e depois no sentido inverso.
É claro que havia uma alternativa, intermédia, oportunamente fornecida pela Empresa de Viação Murta, familiar e eficiente disponibilidade de camionetas (ou caminhetas) de transporte público. Lembre-se, a propósito, o inestimável serviço que, “combinado com a CP”, garantia a cada passageiro dos comboios uma solução para minimizar os tais onze quilómetros, mais metro menos metro, que separavam a cidade da sua estação. A Rosa Maria virtual, o Régio real, eu e mais uns largos milhares de outros seres concretos, fomos utentes desse serviço público, doméstico, com partida (ou chegada) na sede, ao Largo da Boavista, no Rossio e até no fundo da Rua de Elvas.
Mas nós, os gaiatos lagóias dos anos quarenta e cinquenta do século passado, tínhamos da estação um reflexo urbano quase ritual, sobretudo quando as muares que puxavam as “galeras” do senhor Brito iam diariamente, pelas tardes, beber água ao “tanque das bestas”, hoje já demolido, que se situava lá para as traseiras do Café Alentejano, frente ao antigo solar dos condes de Melo, então “palácio” do lavrador José Elias Martins, dono da Praça de Touros. As tais “galeras” eram para nós a tradução local das míticas diligências do Oeste dos filmes de “cobóis” que nos entusiasmavam nas noites quentes do inesquecível Cine-Parque. Grandes carroças cobertas, com dois eixos e respectivos rodados, puxadas por duas concertadas parelhas de muares, serviam para transportar de e para a estação de caminho-de-ferro toda a espécie de mercadorias e géneros.
A minha própria crónica familiar e genealógica está de certo modo associada, num triste episódio, à estrada da Estação. N’A Rabeca do dia 19 de Março de 1933, noticiou-se: “... quando ontem, cerca das 19 horas, regressava de automóvel da sua herdade do Vigário e já próximo da cidade -no sítio dos Assentos- foi acometido de doença súbita o Sr. Miguel de Albuquerque Caldeira Castel Branco de Azevedo Coutinho... (...) Transportado rapidamente, a pedido de seu filho João que o acompanhava, na camioneta da Empresa Murta -que em serviço de carreiras passava no local- o sr. Miguel de Albuquerque chegou a casa já cadáver, vitimado, ao que nos consta, por uma síncope cardíaca...” Miguel de Albuquerque, pai do meu pai, João, foi por isso o avô que nunca conheci... E, neste episódio derradeiro da sua vida, ele -como o nosso mundo é mesmo pequeno!- acabaria por congregar a estrada da Estação, um dos eucaliptos desta onde o automóvel embateu, e até uma camioneta das carreiras que a Empresa Murta cumpria ao serviço da comunidade portalegrense...
Todos fizemos, de facto, grandes viagens todos os diaas.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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