\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, julho 04, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

UM CÊ A MAIS OU UM CÊ A MENOS...
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A ida e volta que hoje proponho, neste passeio regular ao nosso colorido horto gráfico, também não é da minha lavra ou iniciativa. Pertence a um universo anónimo, em que quase tudo vai perdendo paternidade, quando entra e circula nos vastos domínios das redes sociais e seus anexos.
Este texto, que chegou ao meu mail há largas semanas, tem certamente corrido meio mundo e, como está sujeito às leis deste liberal mercado, vai sofrendo, aqui e ali, ontem, hoje e amanhã, algumas alterações. Quem conta um conto, aumenta um ponto – diz a sabedoria popular. Aumenta ou diminui, acrescento eu.
De qualquer forma, reproduzo-o a seguir na precisa forma em que me chegou, e até já nem identifico o amigo que mo enviou. O que sei é que o recolhi e guardei, esperando uma oportunidade para lhe fazer cumprir, numa interminável cadeia de solidariedades -oportunas ou nem por isso-, o destino errante com que foram fadados.
Sem mais detenças, ele aqui vai:
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Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.
Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí.
E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo?  Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hífenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto e, para não errar, tenho a obrigação de os acolher como se fossem família.
Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu.
E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.
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O texto é acutilante q.b., elegantemente carregado de humor crítico, e desmonta, peça a peça, algumas das principais cretinices e imbecilidades que nos querem impingir, sob a capa da mais acabada e sábia “ciência” filológica, sob a desculpa do maior interesse cultural e até económico.
Que poderei acrescentar-lhe?
Que merece culminar num adequado ato, um ato simbólico, à altura da qualidade revelada pelo anónimo autor. Podemos usar para isso uma fita dourada, de laço bem apertado, com uma mensagem gravada em tinta contrastante, para cujo palavreado se poderá sugerir, por exemplo:
Uma boa escola para o avanço do crime – eis uma conclusão inevitável.”
António Martinó de Azevedo Coutinho
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PS – Desculpem-me, por favor. Embalado no discurso, deixei o corretor informático atuar, perdão, actuar. Como devem ter previsto, apenas quis dizer que o belo texto merecia ser premiado com um acto adequado na nossa parte. De facto, uma boa Escola pára o crime -e logo à nascença!-, até  mesmo as tendências para o crime linguístico em que os maus alunos mais tarde incorrem...
Vou desligar o corretor, porque preciso mesmo dos cês, dos pês e dos acentos!
Ou é assentos? Com mil diabos, já nem sei bem...