\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

sexta-feira, julho 08, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

POUCA TERRA... POUCA TERRA...
POUCA GENTE... POUCA GENTE...
.
Hesitei bastante antes de me decidir a trazer aqui mais um sinal de desesperança. Não é novidade. Nem sequer é uma surpresa. Vem nos ínvios percursos de abandono do interior e, sobretudo aqui, do interior mais interiorizado deste pobre País à beira-mar plantado. Há uns anos tinha sido a extinção do Ramal de Portalegre, há uns meses tinha sido o estado de coma (induzido?) do Ramal de Cáceres, agora é a morte anunciada da própria Linha do Leste.
A confirmação veio, preto no branco, no Público do dia 26 de Junho passado, sob o título Estudo entregue à troika propõe fecho de 800 km de linha férrea. Assim, tal e qual. Como é evidente, os 130 km entre Abrantes e Elvas, com passagem por Portalegre Gare, estão aqui incluídos, na lista da morte... Assim como o desligar definitivo da máquina que ainda mantém o Ramal de Cáceres (65 km) artificialmente ligado à “vida”...
Tenho uma certa dificuldade em classificar mais esta calamidade. É que me soa a falso dizer que passaremos a ser o único distrito sem caminho-de-ferro, juntando este título ao do único distrito sem auto-estrada. Deixou de fazer qualquer sentido falar em distrito... Somos, isso sim, paisagem. Ainda por cima... desprotegida.
O fúnebre artigo que cito começa de forma necrológica: “A concretizar-se, será uma razia idêntica à do fim dos anos de 1980, quando Portugal encerrou 800 quilómetros de linhas de caminho-de-ferro, sobretudo no Alentejo e em Trás-os-Montes. O Governo de José Sócrates propôs à troika o encerramento de 794 quilómetros de vias-férreas, também com particular incidência no Norte e no Alentejo, mas desta vez incluindo algumas linhas do litoral, como a própria Linha do Oeste...
Mais adiante, depois da afirmação de que o estudo fora realizado à revelia da Refer, o artigo continua e resume: “O impacto deste eventual encerramento deixa a rede ferroviária circunscrita basicamente ao eixo Braga-Faro, Beira Alta e Beira Baixa, desaparecendo as restantes linhas, sendo amputadas outras.”
Técnicos da Refer criticaram, a este propósito, a circunstância de a proposta ser absolutamente cega, desprezando por exemplo o facto de os encerramentos conjuntos do Ramal de Cáceres e da Linha do Leste privarem Portugal de qualquer ligação ferroviária a Espanha, a Sul de Vilar Formoso, aumentando a distância dos (estratégicos) portos de Sines, Setúbal e Lisboa a Madrid e à Extremadura espanhola. Óbvio!
O mapa aqui reproduzido, com a devida vénia, complementa o oportuno e dramático artigo patente no Público. O seu autor, o jornalista Carlos Cipriano, acrescenta uma “lógica” conclusão, a de que o Governo actual pode “comprar” este documento e fechar as linhas sem grandes dificuldades, alegando as imposições da troika, com a vantagem de o (sujo, acrescento eu!) “trabalho de casa” ter sido feito pelo anterior Governo socialista. A alternativa (corajosa, também acrescento!) será a de mandar estudar tudo de novo...
Deixemo-nos por ora de tristezas, que não pagam estas dívidas. A proposta, pessoal, é a acrescentar a este caso um grato registo de memória de outros tempos. Há dias, quando vasculhava gavetas esquecidas, encontrei, entre outras peças, um velho bilhete de comboio, da Companhia de Caminhos-de-Ferro Portugueses, tarifa inteira (60 escudos e 80 centavos) correspondente à 3.ª classe de uma viagem entre Lisboa P.1 (Santa Apolónia) e Portalegre. A data (gravada nos vincos laterais) remete-nos para 13 de Outubro de 1956, um sábado, como conferi no respectivo calendário. Os regulamentares furinhos de duas sucessivas revisões (antes e depois do Entroncamento) são outros dos pormenores analisados no pequeno rectângulo da cartão cinzento, onde a principal curiosidade reside, precisamente, na sua numeração -00100-, uma invulgar capicua que, provavelmente, me levou a guardá-lo até agora o ter reencontrado...
Os mais de cinquenta anos que separam essa normal viagem de comboio destes tempos conturbados de hoje são, apenas, um sinal dos tempos e das suas diferenças. Antes das carreiras rodoviárias expresso, ou dos automóveis pessoais que marcam a actual vida quotidiana, o caminho-de-ferro era, então, o transporte predilecto, quase exclusivo, que nos ligava ao restante país e, via Espanha, à própria Europa.
Hoje, quando o deserto crescente nos separa dum litoral cada vez mais distante -distante no tempo, distante no espaço, distante sobretudo nos solidários (!?)  projectos de futuro-, esta lembrança do passado não encerra, apenas, um registo de saudade.
Para mim, provavelmente porque sou velho e teimo em pensar pela minha cabeça, aquele rectángulo de cartão cinzento revela-me a certeza de que, apesar de todas as ditaduras, a nossa Democracia tem ainda muito a aprender.
Será capaz de aprender a tempo de nos salvar?
António Martinó de Azevedo Coutinho