\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, julho 18, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

CARATERÍSTICAS POUCO ACADÊMICAS DUM FENÔMENO INFECIOSO E POLÊMICO SEGUNDO UM SÚDITO ESTRANGEIRO NÃO CORRUTO E AUTÔNOMO
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O pomposo título da crónica de hoje é intencional, deliberadamente escrito segundo a norma brasileira, tudo conforme ao accordo ortographico, acrescente-se.
A intenção deste título, quase absurdo e a roçar o irracional, é de homenagem. Homenagem a um cidadão brasileiro, espécie de “soldado desconhecido”, não sepultado num qualquer monumento com chama simbólica a iluminar-lhe a aura eterna, mas vivo e actuante em intervenções acutilantes e oportunas, dotadas duma invulgar qualidade literária e poética.
Trata-se de Vanderlei Martinelli, quadro superior numa grande empresa norte-americana do ramo automóvel no Estado de São Paulo, que de há muito proporciona, e nos disponibiliza, uma profusão de interessantes artigos, em sucessivos “blogues”, como Alecrim, Érotique, Insieme, Outras Palavras, See Sharp ou Tanto Mar. Hoje, desde Outubro de 2009, mantém um outro, bem actual e actuante, denominado Epifanias.
Desacordo Ortográfico, o texto de Vanderlei Martinelli a seguir reproduzido, em delicioso português do Brasil, foi publicado em 31 de Maio de 2008 pelo jornal O Regional, da cidade de Catandufa, no interior do Estado de São Paulo. Na antevéspera, o Epifanias tinha-o divulgado, em primeira mão.
Ao partilhá-lo com os leitores d’A Voz Portalegrense, pretendo provar claramente que o bom senso ainda permanece como uma virtude universal e que, em qualquer parcela do mundo, a verdadeira -e única!- cultura se sobrepõe, tranquila e segura, a todas as agressões e a todos os disparates falsamente cometidos em seu nome.
DESACORDO ORTOGRÁFICO

Aprender a falar (e bem) o idioma do lugar onde nascemos é imprescindível para praticamente tudo que fazemos em nossas vidas. Aprender a ler e a escrever corretamente este idioma também o é. O idioma, a língua, é a ferramenta que dispomos para nos comunicar. Para ouvir, para sermos ouvidos. Para termos contato com o mundo exterior. É óbvio que não é a única forma de comunicação possível ou existente. Mas é uma das mais importantes. No Brasil, onde o “mercado de trabalho” (como vocês talvez saibam, coloco entre aspas porque detesto esse termo) já exige que se fale Espanhol além do costumeiro Inglês, infelizmente ainda não se fala corretamente a língua-mãe, o Português. Que dirá ler e escrever.
Temos uma quantidade absurda de analfabetos e semi-analfabetos, sem contar os milhões de analfabetos funcionais, aqueles que até sabem ler, mas não conseguem entender ou interpretar o que lêem, e é claro, têm também dificuldades para escrever. No outro extremo, temos alguns poucos intelectuais que defendem o uso culto da língua no dia-a-dia ou, pelo menos, a forma que se usa em Portugal. Não é possível, além de quê, seria ridículo. Gosto como o Pasquale Cipro Neto trata disso, defendendo o uso adequado da língua dependendo do seu contexto, formal ou informal.
O brasileiro tem uma forma própria de falar, não só no sotaque. Tanto que em Portugal o idioma que falamos é muitas vezes chamado de “Brasileiro” mesmo. Apesar de ser em teoria o mesmo idioma, há muitas diferenças. Diferenças essas que não impedem de um brasileiro que domina seu idioma entender o Português falado em Portugal e vice-versa. As diferenças, boas ou não, podem conviver pacificamente uma com a outra. Um bom exemplo disso é a Wikipédia (pt.wikipedia.org) em Português. Lá se usam tanto a forma falada no Brasil como a de Portugal e outros países. E é tudo muito inteligível para qualquer pessoa falante da língua.
Quanto ao que escrevo, é óbvio que vocês encontrarão, não só neste como em outros artigos, vários erros involuntários de Português. Mas, é contínua minha busca por escrever cada vez mais corretamente sem, no entanto, cair no ridículo ou na chatice de textos extremamente formais. Procuro escrever da mesma forma que falo, sem também cair num coloquialismo desnecessário. E por que estou falando tanto disso?
Foi ratificado pelos países falantes da Língua Portuguesa um “Acordo Ortográfico”, mudando a grafia de muitas palavras tanto aqui como nos outros países. Várias palavras que crescemos escrevendo tiveram sua forma alterada, o trema foi abolido e também alguns outros acentos em determinadas circunstâncias. Outras palavras, como “reeleger”, serão escritas com hífen (“re-eleger”). Em Portugal as mudanças serão ainda mais drásticas. Em palavras como “óptimo” será abolido o “p”, que não se pronuncia. Embora faça sentido, é do costume português escrevê-la assim. Em outras palavras como “infecção” também será tirado o “c”, passando para “infeção”. Esses são os casos mais absurdos, pois o “c” aí não é mudo nem Portugal nem no Brasil.
Os portugueses estão, e com direito, revoltados com a “reforma”. Além de conter vários erros e itens controversos, é completamente desnecessária. Alegam seus defensores que traria uma integração maior entre os países falantes do Português. Não é verdade, pois mesmo escrevendo de forma semelhante isso não fará o português falar como brasileiro ou vice-versa. Na verdade, mesmo falando diferente, nos entendemos muito bem. Estão querendo resolver um “não-problema” (e criando outros). Também dizem que ajudaria na inserção da Língua Portuguesa no cenário internacional. Outra mentira. O Inglês, que não tem academia que o regule e que é bem diferente o falado e escrito nos EUA e o da Inglaterra, não precisou de reformas “meia-sola” assim para ganhar o mundo.
No mais, a “reforma” mexe com a língua em sua origem, Portugal. O que também não faz sentido. Se alguém tivesse que se adaptar, seríamos nós, não eles. Não sou contra reformas lingüísticas nem contra a evolução do idioma, senão ainda estaríamos falando e escrevendo em Latim. Mas esta reforma, além de mal feita, é desnecessária, dispendiosa e ridícula. Por que não usar esse mesmo tempo e dinheiro para que os brasileiros aprendam o idioma que já temos?
Vanderlei Martinelli

É quase comovente a constatação de que alguém, do outro lado do Atlântico, pode compreender e, depois, expor com rigor e tamanha clareza a exacta dimensão deste problema linguístico, inutilmente criado pela deliberada ignorância (ou será mesmo má-fé!?) de uns quantos.
Sendo certo que Vanderlei Martinelli revela uma cultura muito acima da média, também parece óbvio que a escolha e abordagem deste tema, há mais de 3 anos, mostra a oportunidade da sua inteligente e bem fundada intervenção.
Resta-nos a reconfortante certeza de que, até no Brasil irmão, podemos contar com uma segura solidariedade.
António Martinó de Azevedo Coutinho