\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

terça-feira, maio 17, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

5 – A INDIGESTÃO FINAL

Confesso que não sei se será constitucional divulgar em público, neste momento, uma clara indicação de voto. Corro porém tal risco porque não devo nem posso calar-me, em nome do -este sim, constitucional- direito à indignação.
Apelo claramente à abstenção. Acho que nem um português sequer deve exercer o seu direito e dever de votar.
Os eleitores devem portanto desprezar todos os meios técnicos de votação, crescentemente postos à sua disposição. Para além do sms, da chamada telefónica (certamente de valor acrescentado) e do site específico na internet, existe agora o moderníssimo facebook... Segundo o presidente nacional das 7 Maravilhas, em declarações públicas, é agora enorme a sua expectativa a partir do êxito patente na edição relativa às maravilhas naturais, com 650 mil eleitores a exercer o seu direito de voto. Como o tema da gastronomia é bastante mais popular -cito- para além de os portugueses neste se reverem ainda mais, ele espera que seja atingida a marca simbólica de um milhão de votos.
Confio plenamente na sua desilusão final, embora talvez o mecanismo de votação não disponha de sistemas fiáveis e isentos de contagem.
Mas o tal presidente proferiu então uma declaração (entrevista no Diário de Notícias de 8 de Abril de 2011) com a qual concordo plenamente: - Não tenho dúvidas de que Portugal vive a comida de forma muito emocional.
De facto, é emocionante ver as filas que se acumulam à porta das delegações regionais da CARITAS com gente, potenciais votantes, à espera de comida, quer confeccionada, quer em género. E, a propósito, são também emocionantes as declarações dos voluntários, responsáveis locais da prestigiada e actuante instituição.
De facto, é emocionante ver a distribuição de comida pelos inúmeros sem-abrigo das grandes cidades, por parte de outros voluntários que por igual merecem respeito e admiração pela sua anónima e actuante generosidade.
De facto, é emocionante saber que cada vez mais escolas, em estreita cooperação com as suas autarquias locais, se revelam sensibilizadas e disponíveis para uma efectiva e válida intervenção social, quando mantêm abertas, em férias, os refeitórios onde as crianças-alunos podem viver (leia-se: tomar) as suas (únicas!) refeições, sem qualquer interrupção.
De facto, é emocionante ouvir os testemunhos de inúmeros funcionários, públicos e privados, que vivem agora a comida através da “bucha” que levam de casa para o intervalo do almoço, pois já não podem frequentar os restaurantes de sempre...
De facto, por mim, que desde criança me habituei a respeitar os alimentos e a aproveitar no dia seguinte o que sobra, quando sobra, das refeições da véspera, é sempre com crescente e doloroso remorso interior que, cada vez mais raramente, lanço no devido contentor alguns restos de comida... Com quantos de nós não se passará rigorosamente o mesmo, nesta forma de viver a comida!?
De facto, Portugal vive a comida de forma muito emocional...
Não apetece, portanto, irmos todos já a correr, alegremente emocionados, para participar nesta votação tão decisiva para o nosso futuro alimentar?
Usei abundante ironia nestes escritos, talvez para nela iludir a raiva e a indignação que me assaltam perante a pública obscenidade gastronómica com que alguns pretendem fazer crer que nada de dramático se passa neste nosso desgraçado País.
Falei atrás, quase de raspão, na publicidade que faz o apelo ao voto nas maravilhas gastronómicas. Sob o título geral de A que sabes, Portugal?, esta frequente meia página (que deve custar balúrdios!) está redigida no mais acabado e primoroso estilo “new boy”, com frases curtas, sincopadas, sentidos ocultos e apenas sugeridos à imaginativa gula de cada leitor. Mas está lá tudo. Querem um exemplo? Aqui vai: “...que sai do tacho e vai para baixo”. Sem comentários interpretativos.
Espero, porque não desejo mal a ninguém, que não sobrem daqui algumas dramáticas subidas nos níveis de glicose, colesterol ou triglicéridos de uns quantos.
Também espero que alguém, com assumida autoridade e suficiente sensatez, possa condicionar a programação da nossa dilecta RTP que -assim vem escrito nos jornais- desbasta o nosso erário público (os nossos impostos) num milhão diário de euros. É que o eventual espectáculo delirante duma final pantagruélica poderia ser mal interpretada por aqueles que, lá fora, sustentam os nossos públicos vícios.
Não teria piada nenhuma que, por causa desta reles banalidade, alemães, finlandeses e outros “amigos” europeus nos catalogassem como um povo de pedintes com tiques de ricaços.
António Martinó de Azevedo Coutinho