\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

domingo, maio 15, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

3 – SE ISTO NÃO É OBSCENO, ENTÃO O QUE SERÁ
UMA OBSCENIDADE?

Agora chegámos às sete maravilhas gastronómicas.
A conotação turística cabe-lhe na perfeição, sendo-lhe portanto desde logo aplicável a inerente desconfiança. Aliás, creio que ela já é evidente desde a primeira hora.
Recapitulemos sumariamente as dentadas, perdão!, as fases preliminares já percorridas, precisamente num país e num momento em que a fome se vai instalando... Não quero, de modo algum, utilizar filosofia barata. Infelizmente, pelos motivos que todos bem conhecemos, pela crise global mas sobretudo pela acção demagógica e altamente incompetente de quem nos (des)governou nos mais recentes tempos, temos quotidianamente as imagens e os dramáticos testemunhos das gentes de um país que caminha a passos largos para a irreversível instalação de um crescente sistema social de pobreza e de miséria, onde a luta pela sobrevivência se tornará, a curto prazo, palavra de ordem quase geral.
E é neste preciso momento que passam na nossa televisão pública, alta patrocinadora do lamentável espectáculo, sucessivos programas de ostentação dita gastronómica.
Tudo começou, em princípios de Abril (dia 7, claro!), pela selecção de 70 dos 433 pratos concorrentes. Um painel de especialistas, intitulado conselho científico (sic!), foi responsável por este drástico corte. Cada uma das sete categorias componentes -entrada, sopa, peixe, marisco, carne, caça e doce- foi contemplada com dez diferentes escolhas, portanto setenta no total.
Logo aqui houve sérias contestações, fundadas nas mais incontestáveis lógicas sectoriais. Afinal, tinham sido excluídos, liminarmente, o arroz-doce e o leite-creme, autênticas instituições nacionais da doçaria, como se sabe...
Por mim, não percebi bem como apareciam o pastel de bacalhau, a açorda de bacalhau, o bacalhau à Brás, o bacalhau à Zé do Pipo e o bacalhau à Gomes de Sá, quando o regulamento deixava expresso, e bem claro, que tudo tinha de ser confeccionado a partir de ingredientes produzidos em território nacional. Provavelmente, ignorância minha, a Noruega ou a Terra Nova serão domínio português...
Mas o meu orgulho lagóia reviu-se, com uma lágrima de emoção ao canto do olho, quando me apercebi de que a candidatura da encharcada do Convento de Santa Clara se mantinha entre os seus açucarados pares.
O cozido à portuguesa lá estava na honrosa lista, mas desesperei na baldada procura da caldeirada. Pensei então: - Que vão dizer desta flagrante injustiça os meus amigos de Peniche? (a sério, tenho mesmo amigos, e dos bons, em Peniche!)
Porém, onde fiquei quase reconciliado com todo aquele abominável faz-de-conta foi através do sentimento vivido na minha alma alentejana: então não acontecia serem 12 (doze!!!) as nomeações com que a minha província natal contribuia para o bolo global?! Eram assim a maioria quase absoluta, que duas credenciadas especialistas na matéria, em diferentes órgãos de comunicação social, foram unânimes em reconhecer como uma antecipada “vitória moral”, da simplicidade e precisão dos ingredientes utilizados (Dona Maria de Lourdes Modesto, no Correio da Manhã) ou da imaginação alentejana (Dona Filipa Vacondeus, no Diário de Notícias).
Passei a achar quase absurdos os protestos avulsos: um terceirense reclamava contra o esquecimento da (soberba) alcatra da sua terra; uma beirã exigia a reposição dos maranhos (também gosto); um tipo de Almeirim reivindicava um lugar para as favas com chouriço (fiquei com curiosidade); Vendas Novas lembrava os seus pregos (que saudosa delícia obrigatória, quando ainda não havia a auto-estrada); Chaves interrogava-se sobre a primazia concedida a Barrancos nos domínios do presunto (fico-me pelo empate técnico); a cereja do Fundão (então e a de São Julião?!) mais o medronho algarvio perguntavam se não mereciam estar ao lado do ananás dos Açores...
Enfim, depois de toda esta excitação, veio o terrível dia 7 de Maio.
Conto isso a seguir...
António Martinó de Azevedo Coutinho