António Martinó de Azevedo Coutinho
CRÓNICA SEGUNDA
O (des)Acordo de 1945, assinado e depois assassinado, perdão!, “desassinado” pelo Brasil não foi apenas importante por este incrível facto, já de si exemplar.
Tal concordância, cientificamente avalizada pelas autoridades linguísticas da época, de um e de outro lado do Atlântico, consignava uma realidade indiscutível, agora pura e simplesmente espezinhada. Refiro-me à magna questão das tais consoantes mudas, o c e o p, oficialmente “suprimidas” no actual Acordo...
Sirvo-me do testemunho, indiscutível, do principal cozinheiro português da presente mistela pseudo-linguística, o professor doutor Malaca Casteleiro, que, em entrevista concedida ao Jornal de Notícias do dia 6 de Abril de 2008, declarava que a principal mudança era, precisamente, “a queda das consoantes mudas ou não articuladas”.
Parece portanto ter-se centrado precisamente neste objectivo toda a negociação do presente Acordo. Para compreendermos com simplicidade o absurdo da actual situação, basta analisar aquilo a que, neste particular, se tinha chegado a acordo em 1945.
Pelo diploma então assinado tinham sido eliminadas determinadas letras consonânticas, precisamente o c e o p das sequências interiores cc, cç, ct, pç ou pt, nos casos em que eram invariavelmente mudas nas pronúncias portuguesa e brasileira. Como exemplos, basta lembrar adjuncto, absorpção ou esculptor.
No entanto, tais letras consonânticas conservavam-se quando:
• - são invariavelmente proferidas;
• - são proferidas só em Portugal ou só no Brasil;
• - após as vogais a, e ou o, se não for invariável o seu valor fonético e ocorram em seu favor outras razões, tais como a tradição ortográfica, a similaridade do Português com as demais línguas românicas e ainda quando influem no timbre das referidas vogais.
• - embora mudas, devam harmonizar-se com formas afins.
Eis as lógicas -também inteligentes e científicas- razões pelas quais continuámos a escrever, por exemplo: acepção, adopção, abjecção, acção, arquitectura, carácter, circunspecção, didáctico, insecto, projectar, retroactivo e tantas outras palavras que certos iluminados pretendem agora estropiar...
Alguns especialistas de respeitáveis escolas linguísticas juntam a estas razões o argumento da útil associação de uma mesma imagem gráfica a um mesmo morfema lexical, facto da maior importância, quer no reconhecimento de uma determinada língua escrita entre as suas pares, quer na facilitação da sua própria aprendizagem por naturais ou por estrangeiros.
Já quanto à similaridade do Português com as demais línguas românicas, creio que também este argumento deveria ser, por si só, bastante e até mesmo definitivo. Ainda que rudimentarmente, todos os que estudámos Latim percebemos de forma exemplar as razões lógicas de cada c ou de cada p, como partes essenciais das palavras e nunca delas constituindo simples adorno ou dispensável apêndice.
Sou dos que, deliciados, apreciam a palavra, cada palavra, escrita por mestres como Jorge Amado ou Machado de Assis, ou cantada por magos como Chico Buarque ou Maria Bethânia, mas não lhes reconheço qualquer razão de paternidade quanto ao poderoso instrumento que usam: a língua portuguesa. Maçudo e quase impenetrável era (e é!) De Bello Gallico, mas posso reconhecer em Caio Júlio César a autoridade de quem usou com propriedade uma língua própria, de tal forma que através dela cimentou uma herança cultural, incontornável, que perpassou incólume por séculos, até hoje e até nós...
A cadeia natural da relatividade histórica regista uma lógica sequência que liga romanos-lusitanos-portugueses-brasileiros, a qual parece ser hoje pretensamente invertida de forma leviana e absurda, quando se busca na moderna prática brasileira o modelo da perfeição ortográfica.
Outro factor deveria agora pesar, e também não pesou. Em 1945, discutiu-se entre pronúncia brasileira e pronúncia portuguesa, desprezadas então as diversidades fonéticas vividas e praticadas nas nossas “províncias ultramarinas”. Passadas umas décadas, a realidade política é bem diversa, a partir da plena independência dos países africanos, nossas antigas colónias, bem como de Timor Leste, não esquecendo os significativos casos de Goa e de Macau, onde a língua portuguesa continua (e deve continuar) a desempenhar um inestimável papel como efectivo (e afectivo!) agente de ligação histórico-cultural.
No entanto, visto de certo modo, este Acordo mais parece próprio dos tempos do Império Colonial. Quem garante aos “sábios da nova gramática” que Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau ou Timor terão cegamente que corresponder aos caprichos linguísticos neo-colonialistas ditados a partir do eixo Brasília-Lisboa?
António Martinó de Azevedo Coutinho
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