António Martinó de Azevedo Coutinho
E do outro lado, do lado brasileiro que nada terá a arriscar nem a perder, neste desigual combate, que lógicas unanimidades existem, que inopinadas discordâncias se notam?
A realidade é que também aí se contam as espingardas, porque há os dois lados da barricada. Para concluir esta minha provocação pessoal, para lançar mais um desafio que incomode q.b. e que faça sair uns quantos da habitual modorra com que costumam acolher estas coisas, sempre na expectativa de que os outros resolvam, por nós, o nosso próprio destino, para acabar em protesto a curta série de textos sobre o (antigo) ensino do (antigo) Português, então aqui fica uma citação final, esta na íntegra e vinda de além-mar.
É assinada por Diogo Briso Mainardi, escritor, produtor, guionista de cinema e colunista brasileiro, que se tornou um dos mais conhecidos e apreciados jornalistas no país irmão, devido a uma coluna semanal que assina na revista Veja, onde tece saborosas e contundentes críticas à sociedade local e às suas tendências políticas, em geral.
É da edição n.º 2081 de Veja, relativa a 8 de Outubro de 2008, que transcrevemos o artigo de Diogo Mainardi intitulado Uma Reforma mais radical:
“Eu sou um ardoroso defensor da reforma ortográfica. A perspectiva de ser lido em Bafatá, no interior da Guiné-Bissau, da mesma maneira que sou lido em Carinhanha, no interior da Bahia, me enche de entusiasmo. Eu sempre soube que a maior barreira para o meu sucesso em Bafatá era o C mudo. Aguarde-me, Bafatá!
Nossa linguagem escrita está repleta de letras inúteis. A rigor, todas elas. Abolir o trema ou o acento agudo de alguns ditongos deveria ser apenas o primeiro passo para abolir o resto do alfabeto. Se os italianos decidissem abolir a linguagem escrita, perderiam Dante Alighieri. Se os brasileiros decidissem abolir a linguagem escrita, conseguiriam libertar-se de José Sarney.
José Sarney idealizou a reforma ortográfica em 1990. Ela foi escanteada por praticamente duas décadas, até a semana passada, quando Lula a sancionou. A posteridade se recordará da reforma ortográfica como a grande obra de José Sarney, ao lado da emenda parlamentar que permitiu ampliar o aeroporto internacional do Amapá para o atendimento de 700 000 passageiros.
Para os brasileiros, a reforma ortográfica tem um efeito nulo. Ninguém sabia escrever direito antes dela, ninguém saberá escrever direito depois. O caso dos portugueses é mais complicado. Eles concordaram em abrasileirar sua ortografia. Isso acarretou a necessidade de abdicar de um monte de consoantes duplas herdadas do latim. Alguém ainda se lembra de José de Anchieta? Quando ele desembarcou no Brasil, abdicou do latim e passou a rezar em tupi, para poder se comunicar com os canibais. Foi o que os portugueses, mais uma vez, concordaram em fazer agora: para poder se comunicar com os canibais -Quem? Eu?-, adotaram sua língua.
Eu entendo perfeitamente o empenho dos brasileiros em deslatinizar a língua escrita. De certo modo, o latim representa tudo o que rejeitamos: os valores morais, o rigor poético, o conhecimento científico, o respeito às leis, a simetria das formas, o pensamento filosófico, a harmonia com o passado, o estudo religioso. Ele encarna todos os conceitos da cultura ocidental que conseguimos abandonar. Eliminando o C e o P de certas palavras, Portugal poderá se desgrudar da Europa e ancorar na terra dos tupinambás.
Eu já enfrentei outra reforma ortográfica. Em 1971, durante a ditadura militar, Jarbas Passarinho, por decreto, cancelou uma série de acentos. Além do Brasil, só a China de Mao Tsé-tung pensou em fazer duas reformas ortográficas em menos de quarenta anos. Quando a reforma ortográfica de Jarbas Passarinho foi implementada, eu acabara de me alfabetizar. O resultado desse abuso foi despertar em mim uma salutar ojeriza pela escola. Nos anos seguintes, a única tarefa didática que desempenhei com interesse foi me lambuzar com cola Tenaz e, depois de seca, despelá-la aos pedacinhos. Meus amigos fizeram o mesmo. O analfabetismo causado pela reforma ortográfica de 1971 - e pela cola Tenaz - impediu que muitos de nós nos transformássemos em algo parecido com José Sarney. Espero que a reforma ortográfica de 2008 tenha um resultado semelhante. Em Carinhanha e em Bafatá.”
Alguém encontrou alguma dificuldade em entender todo o sabor desta crónica, sem escrita unificada, a não ser, talvez, os significados de escanteada (ignorada), tupi (antiga língua indígena) ou ojeriza (rejeição), que não são ortografia mas, sim, dialecto, variante, riqueza?
Enfim, cada povo tem o que merece. Com este primeiro-ministro, o seu Governo e mais a Oposição, com o Venerando Chefe do Estado mais os outros altos magistrados da Nação, enfim, com tudo o que, de letrado a ilustre, temos e aturamos, por que raio deveríamos esperar, da Escola e do seu tutelar Ministério, alguma coisa melhor do que a mediocridade?
Agora, segundo parece, até querem acabar com os chumbos!? Se fôsse pela exigência, pelo trabalho extra e pelo rigor, até concordaria. Porém, habituados como estamos aos nivelamentos por baixo e aos “sucessos” estatísticos, já todos sabemos o que a casa gasta...
Até qualquer dia, aqui ou na clandestinidade.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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