Luís Filipe Meira
11º
Portalegre JazzFest
Entre
Chopin e O Som do Inferno
O
jazz em formato de festival regressou a Portalegre de forma empenhada e
afirmativa. O Festival Internacional de Jazz de Portalegre tem um rumo definido
que aposta forte nas estéticas vanguardistas que vão dominando o jazz europeu
em conflito direto com o jazz mais cool
ou smoth jazz se quiserem, tendência mais
suave nascida da fusão do jazz propriamente dito com a pop, r&b ou a soul music.
O
jazz como escola de improvisação tem sentido ao longo dos anos alguns abalos
sísmicos provocados pela chegada de novos músicos com ideias muito próprias e imbuídos
dum espirito reformador, que, de alguma forma, têm sido responsáveis pela
vitalidade dessa música fascinante, nascida da cultura popular e da
criatividade das comunidades negras, há mais de um século nas zonas limítrofes
de Nova Orleães e que se foi desenvolvendo a partir do cruzamento de várias
tradições musicais.
São
históricos os debates - autênticas batalhas, por vezes - no seio da comunidade
jazzística ao longo dos anos. Em meados da década de 30, amantes do jazz de
Nova Orleães criticaram as "inovações" da era do swing como contrárias a improvisação coletiva, que tinham como
essencial para a natureza do "verdadeiro" jazz.
Duke Ellington dizia, "é tudo
música." Alguns críticos, no entanto, têm dito que a música de Ellington não era de facto jazz, pois,
segundo esses críticos, o jazz não pode ser orquestrado.
Davide Ake, estudioso, investigador e
professor universitário com várias obras publicadas, adverte que a criação de
"normas" no jazz e o estabelecimento de um "jazz
tradicional" pode excluir ou deixar de lado outras formas de jazz avant-garde, tornando um espaço artístico
de liberdade criativa indiscutível num ghetto com comissão de censura, diria
eu.
O
grande Charlie Parker, que hoje passa
por ser um dos maiores músicos de sempre e principal responsável pelo movimento
que revolucionou o género na década de 50, chegou a estar proibido pelo
sindicato dos músicos de fazer gravações por causa da sua veia reformadora que
encantava os jovens músicos, mas ameaçava os veteranos.
Os
exemplos de polémicas sobre a introdução de novas formas de composição e novos
fraseados sonoros no jazz são mais que muitos e seria fastidioso listá-los
todos, como exemplo citaria apenas a aventura elétrica de Miles Davies que deu dois álbuns superlativos, In a Silent Way e Bitches Brew, ambos de 1969
ou os delírios sonoros de free jazz
de Ornette Coleman, Cecil Taylor, Sun Ra
ou Albert Ayler, passando pelo jazz de fusão da década de 70 bem retratado
pelos Weather Report, a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin
ou os Return to Forever de Chic Corea,
até ao jazz europeu de Jean Luc Ponty,
Philippe Catherine, Jan Garbarek ou Michaeł Urbaniak.
Ora
se os músicos e os críticos/divulgadores estão divididos sobre as fronteiras
que delimitam o jazz, também será perfeitamente natural que essa divisão se
estenda ao público que frequenta este tipo de concertos. O que naturalmente
aconteceu nas conversas que ocorreram no foyer do CAE no fim de semana passado,
logo a seguir aos concertos dos FIRE!
de Mats Gustafsson e dos Lean Left de Ken Vandermark, protagonistas de performances devastadoras que
feriram os tímpanos e baralharam os neurónios da esmagadora maioria dos
espetadores que se deslocaram ao CAE.
Mas vamos por partes.
Coube ao pianista Mário Laginha acompanhado
pelo baterista Alexandre Frazão e pelo contrabaixista Nelson Cascais, cumprir a
tradição de serem músicos portugueses a abrir o Portalegre JazzFest.
Perante
uma sala quase cheia de um público entusiasta e conhecedor, este Trio de Mário
Laginha, que reúne alguns dos melhores músicos portugueses, ofereceu um
magnífico concerto, assente nos álbuns Espaço
de 2007, álbum que enaltece de forma exemplar a união entre a música e a arquitetura,
e Mongrel de 2011, disco onde o
pianista presta tributo à música de Chopin,
que aborda de uma forma respeitosa, mas libertadora. Apetecia-me destacar a
extraordinária performance de Alexandre Frazão, que é hoje, sem sombra de
dúvidas, um dos maiores bateristas portugueses, seja qual for a área, mas seria
injusto para Nelson Cascais, um experimentado contrabaixista, que troca a exuberância
pela segurança interpretativa e para Mário Laginha que é na verdade um pianista
de criatividade e técnica absolutamente fora do comum. Foi uma noite perfeita que
abriu a preceito esta 11ª edição do Festival Internacional de Jazz de
Portalegre.
FIRE!
Mats Gustafsson,Andreas Werlin e Johan Berthling.
Lean
Left de Ken Vandermark,Paal Nilsen-Love, Terrie Ex e Andy Moor
FIRE é a oxidação rápida de um
material no processo de combustão. Fazendo jus ao nome, FIRE!, o trio nórdico
de Mats Gustafsson, Andreas Werlin e Johan Berthling incendiou em pouco mais de uma hora, o Grande
Auditório do CAE, na 2ª noite do Portalegre JazzFest, não deixando pedra sobre
pedra. Tenho dúvidas que haja algum espetador, que tenha passado na 6ª feira
pelo CAE, que volte a encarar a música da mesma forma que o fazia antes, tal a
intensidade e violência, gratuita por vezes, da
performance dos FIRE!. Num concerto de grande complexidade, mas
paradoxalmente fascinante, Gustafson
e seus pares arrasaram os neurônios do público presente desenvolvendo propostas
sonoras arquitetadas por cima dos cruzamentos de várias tendências musicais. Da
eletrónica ao rock, do free jazz ao minimal industrial passando pela ambient music tudo cerzido por
estruturas noise terrivelmente distorcidas, os FIRE! acabaram por fazer o retrato sonoro do caos social em que (sobre)vivemos.
Devastador,
desconfortável, intenso, poderoso mas, como referi atrás, absolutamente fascinante.
Palavras, quase rebuscadas, que utilizo na tentativa de explicar o que se
passou na 6ª feira passada no CAEP. Tenho no entanto a certeza que será sempre
uma tentativa gorada...porque não há palavras que possam descrever minimamente
este extraordinário concerto.
E
se atrás escrevia que o grupo FIRE!
não tinha deixado pedra sobre pedra com a sua intensa e devastadora performance,
que poderia ser perfeitamente entendida como a banda sonora do caos social em
que as sociedades modernas (sobre) vivem...
Depois
da atuação dos Lean Left de Ken Vandermark, diria que nem as pedras
se salvaram... A estrutura desmantelada pelos FIRE! desintegrou-se com o som dos Lean Left.
Há
dois anos atrás, depois de um concerto deste grupo no "Dalston's Cafe Oto" em Londres, John Fordham escreveu no jornal
britânico "The Guardian"
que as probabilidades de esquecer o concerto seriam nulas, mais não fosse, pelo
zumbido que iria persistir nos ouvidos pela noite fora. Escreveu também Fordham que o mobiliário da sala esteve
sempre á beira da destruição devido aos níveis de volume sonoro utilizados por
esta trupe de improvisadores meio loucos, digo eu, que elevam a sua performance
a um caos sonoro inimaginável. Atrever-me-ia ainda a dizer que se a performance
dos FIRE! é o caos
"organizado", a dos Lean Left
é o caos "anárquico". Onde, calculo, tudo pode acontecer e ninguém
conhece o próximo passo, nem os espetadores, que podem chegar ao limite do
suportável e abandonar a sala, como de resto algumas pessoas fizeram, nem os
próprios músicos que vão gerindo o som de forma compulsiva e as sensações
momento a momento, sem darem mostras de se preocuparem minimamente com a reação
da plateia.
Se
o inferno tiver som ambiente, não deve ser muito diferente daquele que a dupla Ken Vandermark/Paal Nilssen-Love com os
holandeses Ex Guitars nos apresentaram
na noite de encerramento da 11ª Edição do Portalegre JazzFest e que mantém
acesa a discussão; será que o jazz como escola de improvisação tem fronteiras?
Foi jazz o que os LEAN LEFT e os FIRE! trouxeram a Portalegre? Convenhamos que, como hipótese de discussão,
meramente acadêmica, pode ser interessante...
Para
serenar e depois de uma excelente prova de vinhos, licores e enchidos da região
com os deliciosos rebuçados de ovo a rematar, ainda houve tempo para uma viagem
relaxante ao Delta do Mississippi onde Samuel James foi buscar inspiração para
nos oferecer noite dentro alguns blues
rurais de excelente colheita...
Em
tempos que os investimentos na cultura são cada vez mais mitigados e em que as
pessoas veêm estas apostas de algum risco com desconfiança, atrever-me-ia a
dizer que valeu a pena. Foram 35 000 euros aplicados num evento que contou com
perto de 1200 participantes em todas as vertentes e nos 3 dias do festival;
concertos, afterhours e workshops, o
que é bastante bom em comparação com outros anos.
Portanto
poderemos concluir que este 11º Portalegre JazzFest foi um sucesso em termos
globais.
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