\ A VOZ PORTALEGRENSE: Luís Filipe Meira

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Luís Filipe Meira

Noite de Fados no CAEP
 
Com Camané
 
O fado vive em estado de graça e passa por um momento de afirmação, talvez único na sua história. Nem durante o antigo regime, que utilizava o fado como arma de propaganda politica, o fado viveu o momento excecional que agora vive. E não terá sido pela Unesco ter declarado o Fado como Património Imaterial da Humanidade, isso terá sido uma consequência e não uma causa.
Em minha opinião, o momento atual do fado é o culminar de um processo de renovação de mentalidades encetado desde há alguns anos e que tem vindo a abrir o fado ao mundo. Processo que, para além de trazer novos públicos, levou a que as novas gerações se interessassem por ouvir e cantar o fado. Há uma nova forma de estar no fado que leva a que os fadistas interajam com outros músicos e se apresentem em palcos impensáveis.
Camané apresentou o álbum Sempre de Mim no Sudoeste, um festival marcadamente pop/rock. Ainda há poucos dias ouvi Kátia Guerreiro falar com entusiasmo de uma atuação na Arábia Saudita e de um tour por oito cidades dinamarquesas, algumas delas pequenas comunidades que nunca tinham ouvido falar de fado e muito menos ouvir canta-lo. Carminho grava com Chico Buarque e Milton Nascimento, emociona Caetano Veloso e é convidada surpresa de Nicolas Jaar, um mágico da eletrónica, para um concerto na discoteca Lux. Ana Moura partilha o palco com Prince e com os Rolling Stones. Mariza já teve duas nomeações para os Latin Grammy Awards e os seus álbuns entram nas listas dos melhores do ano de importantes publicações ligadas à World Music. E Gisela João? Essa menina de Barcelos (!) que esgota salas, veste calções, ténis, tem tatuagens nos braços e uma voz belíssima ainda maior que o seu sorriso e que, como escreveu Nuno Pacheco no Ipsilon, apresentou uma pérola como estreia discográfica.
Ora tudo isto é a demonstração cabal do momento alto, quiçá único, que vive o fado e que, é preciso dizê-lo, não perdeu as referências; Gisela João tem Camané como estrela-guia, que por sua vez tem Carlos do Carmo como referência. E esta trilogia é interessante; pois se em 2013 Gisela João fez o disco do ano, Carlos do Carmo celebrou 50 anos de carreira com Fado é Amor, disco gravado em dueto com alguns dos maiores fadistas da atualidade. E Camané fez também uma celebração de carreira com a edição da coletânea ”O Melhor 1995-2013” e um grande concerto no Coliseu de Lisboa. Celebração que se estendeu para este ano com um tour que começou a 10 de Janeiro em Beja e que irá terminar em Viena d`Áustria a 18 de Maio, após 23 concertos em Portugal, Macedónia, Bélgica, Holanda e Alemanha.
Portalegre, por esta vez, “contou para o totobola” e entrou na rota de Camané, que atuou no CAE no passado sábado perante uma plateia madura, que esgotou praticamente o Grande Auditório, plateia e balcão incluídos, da sala da Praça da República.
O concerto, coisa rara, começou a horas, estendeu-se por hora e meia e teve um arranque devastador com uma tripla constituída por Complicadíssima Teia de António Boto, Sopram Ventos Adversos e Luz de Lisboa de Manuela de Freitas
Com a sala ainda envolta em escuridão, ouve-se aquela voz intensa e única de predestinado cantar à capella em plenos pulmões “Complicadíssima Teia” que cola de imediato a “Sopram Ventos Adversos” - que José Mário Branco gravou em 1982, no álbum Ser Solidário – que cola a “Luz de Lisboa”. E a partir daí, passada a primeira tempestade perfeita, foi um Camané ainda mais que perfeito nas interpretações, mais contido, como é sua característica, na interação com o público, o que pouco importa, pois nós estamos ali para ouvir o cantor no seu talento interpretativo e não o artista em piadas de circunstância. Mas mesmo a relação com o público é perfeita, pois o fadista mesmo sabendo que tem o público na mão, nunca deixa de manter um diálogo tranquilo e uma atitude verdadeiramente humilde que nem por um momento soa a falso. Mesmo quando, sem ter necessidade de o fazer, quase pede desculpa por cantar “Abandono” de Amália, sentimos a genuinidade da justificação. E é essa genuinidade respeitosa, sem subserviência, que mais impressiona nas interpretações de Camané, seja na forma como conta a história de um desentendimento entre Carlos Ramos e Marceneiro por causa de um poema, seja na intensidade que coloca na interpretação dos poemas de David Mourão Ferreira, Fernando Pessoa, Pedro Homem de Mello, Manuela de Freitas, Álvaro de Campos, na forma como canta Zé Mário Branco, João Ferreira Rosa e Fausto ou os poetas populares que escreviam poemas de amor para fado.
Ontem, no final do espetáculo, quando vi a felicidade daquele auditório a agradecer de pé a excelência do espetáculo que tinha acabado de assistir e obrigar o fadista a regressar por três vezes ao palco, lembrei-me de um texto que li algures no ano passado sobre um concerto de Camané no CCB e que dizia qualquer coisa como isto; se o CCB se levantou para aplaudir o concerto, então também aplaudiu as escolhas do fadista, os poetas e fados e as suas interpretações ao longo de duas décadas. Foi exatamente o que eu senti no final daquele concerto. A plateia aplaudiu o concerto, mas também agradeceu tudo que o fadista nos tem oferecido ao longo da sua brilhante carreira.
As notas finais, Prof Marcelo dixit, vão para o despojamento do cenário, em que o foco está centrado naquilo que é mais importante, a música e os músicos. E para os três músicos que mais que o suporte do artista, são de uma forma discreta, mas extremamente competente, parte integrante e fundamental do concerto.