Luís Filipe Meira
Com Camané
O fado vive em estado de graça e passa por um
momento de afirmação, talvez único na sua história. Nem durante o antigo
regime, que utilizava o fado como arma de propaganda politica, o fado viveu o
momento excecional que agora vive. E não terá sido pela Unesco ter declarado o Fado como Património Imaterial da Humanidade,
isso terá sido uma consequência e não uma causa.
Em minha opinião, o
momento atual do fado é o culminar de um processo de renovação de mentalidades
encetado desde há alguns anos e que tem vindo a abrir o fado ao mundo. Processo
que, para além de trazer novos públicos, levou a que as novas gerações se
interessassem por ouvir e cantar o fado. Há uma nova forma de estar no fado que
leva a que os fadistas interajam com outros músicos e se apresentem em palcos
impensáveis.
Camané apresentou o álbum Sempre de Mim no Sudoeste, um festival marcadamente pop/rock. Ainda há poucos
dias ouvi Kátia Guerreiro falar com entusiasmo de uma atuação na Arábia Saudita
e de um tour por oito cidades dinamarquesas, algumas delas pequenas comunidades
que nunca tinham ouvido falar de fado e muito menos ouvir canta-lo. Carminho
grava com Chico Buarque e Milton Nascimento, emociona Caetano Veloso e é
convidada surpresa de Nicolas Jaar, um mágico da eletrónica, para um concerto
na discoteca Lux. Ana Moura partilha o palco com Prince e com os Rolling Stones.
Mariza já teve duas nomeações para os Latin Grammy Awards e os seus álbuns
entram nas listas dos melhores do ano de importantes publicações ligadas à
World Music. E Gisela João? Essa menina de Barcelos (!) que esgota salas, veste
calções, ténis, tem tatuagens nos braços e uma voz belíssima ainda maior que o
seu sorriso e que, como escreveu Nuno Pacheco no Ipsilon, apresentou uma pérola
como estreia discográfica.
Ora
tudo isto é a demonstração cabal do momento alto, quiçá único, que vive o fado
e que, é preciso dizê-lo, não perdeu as referências; Gisela João tem Camané
como estrela-guia, que por sua vez tem Carlos do Carmo como referência. E esta
trilogia é interessante; pois se em 2013 Gisela João fez o disco do ano, Carlos
do Carmo celebrou 50 anos de carreira com Fado
é Amor, disco gravado em dueto com alguns dos maiores fadistas da atualidade.
E Camané fez também uma celebração de carreira com a edição da coletânea ”O
Melhor 1995-2013” e um grande
concerto no Coliseu de Lisboa. Celebração que se estendeu para este ano com um tour
que começou a 10 de Janeiro em Beja e que irá terminar em Viena d`Áustria a 18
de Maio, após 23 concertos em Portugal, Macedónia, Bélgica, Holanda e Alemanha.
Portalegre,
por esta vez, “contou para o totobola” e entrou na rota de Camané, que
atuou no CAE no passado sábado perante uma plateia madura, que esgotou
praticamente o Grande Auditório, plateia e balcão incluídos, da sala da Praça
da República.
O
concerto, coisa rara, começou a horas, estendeu-se por hora e meia e teve um
arranque devastador com uma tripla constituída por Complicadíssima Teia
de António Boto, Sopram Ventos Adversos e Luz de Lisboa de
Manuela de Freitas
Com
a sala ainda envolta em escuridão, ouve-se aquela voz intensa e única de
predestinado cantar à capella em plenos pulmões “Complicadíssima Teia”
que cola de imediato a “Sopram Ventos Adversos” - que José Mário
Branco gravou em 1982, no álbum Ser Solidário – que cola a “Luz de Lisboa”.
E a partir daí, passada a primeira tempestade perfeita, foi um Camané ainda mais
que perfeito nas interpretações, mais contido, como é sua característica, na
interação com o público, o que pouco importa, pois nós estamos ali para ouvir o
cantor no seu talento interpretativo e não o artista em piadas de
circunstância. Mas mesmo a relação com o público é perfeita, pois o fadista
mesmo sabendo que tem o público na mão, nunca deixa de manter um diálogo
tranquilo e uma atitude verdadeiramente humilde que nem por um momento soa a
falso. Mesmo quando, sem ter necessidade de o fazer, quase pede desculpa por
cantar “Abandono” de Amália, sentimos a genuinidade da justificação. E é
essa genuinidade respeitosa, sem subserviência, que mais impressiona nas
interpretações de Camané, seja na forma como conta a história de um
desentendimento entre Carlos Ramos e Marceneiro por causa de um poema, seja na
intensidade que coloca na interpretação dos poemas de David Mourão Ferreira,
Fernando Pessoa, Pedro Homem de Mello, Manuela de Freitas, Álvaro de Campos, na
forma como canta Zé Mário Branco, João Ferreira Rosa e Fausto ou os poetas
populares que escreviam poemas de amor para fado.
Ontem,
no final do espetáculo, quando vi a felicidade daquele auditório a agradecer de
pé a excelência do espetáculo que tinha acabado de assistir e obrigar o fadista
a regressar por três vezes ao palco, lembrei-me de um texto que li
algures no ano passado sobre um concerto de Camané no CCB e que dizia qualquer
coisa como isto; se o CCB se levantou para aplaudir o concerto, então também
aplaudiu as escolhas do fadista, os poetas e fados e as suas interpretações ao
longo de duas décadas. Foi exatamente o que eu senti no final daquele concerto.
A plateia aplaudiu o concerto, mas também agradeceu tudo que o fadista nos tem
oferecido ao longo da sua brilhante carreira.
As
notas finais, Prof Marcelo dixit, vão para o despojamento do cenário, em que o
foco está centrado naquilo que é mais importante, a música e os músicos. E para
os três músicos que mais que o suporte do artista, são de uma forma discreta,
mas extremamente competente, parte integrante e fundamental do concerto.
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