\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, setembro 13, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

Temos procurado intercalar incursões às tórridas pranchas e às movediças vinhetas do Congo de Tintin com algumas estadias, nem sempre mais tranquilas, pelas suas vizinhanças.
Hoje a proposta insere-se na primeira alternativa. É forçoso enfrentar as acusações de racismo e de xenofobia já transcritas, ainda que nem sempre formuladas -quase nunca!- pelo acusador-mór, o senhor Bienvenu.
Entre as diversas críticas feitas a Tintin no Congo, exprimem-se conclusões/acusações traduzíveis numa frase simples e directa, que sintetiza forma e conteúdo: os negros parecem macacos e falam como idiotas.
Analisemos a questão formal.
Em determinado passo das suas entrevistas a Numa Sadoul, Hergé declarou: - As minhas personagens são caricaturas, não o esqueçamos!
O criador de Tintin foi, ele próprio, um leitor de bandas desenhadas. O seu autor predilecto foi Benjamin Rabier (1864-1939), um autor francês de grande qualidade gráfica e narrativa. Na precisa linha da caricatura que Hergé aplica às suas personagens, podemos colocar à cabeça da lista o protagonista. De facto, sem que o próprio o tenha explicitamente confessado, parece ter sido numa espécie de síntese gráfico/onomástica de duas figuras criadas por Benjamin Rabier que terá surgido Tintin. Falamos de Tintin Lutin, herói de algumas histórias saídas da invenção do famoso desenhador francês, a partir de 1897, e de uma personagem secundária desta série, de nome Onésime, um jovem de poupa loura e calças “à golf”...
Autor de um notável bestiário -onde Hergé buscou modelo para muitos dos animais que colocaria no Congo-, Rabier foi porém avaro na proposta de personagens humanas de raça negra. Terá sido em The Katzenjammer Kids, série criada em 1897 pelo norte-americano Rudolph Dirks e já então publicada na Europa, que ele vai encontrar figuras caricaturais de negros. E, quase seguramente, também no celébre Bilbolbul, um negrinho inventado na Itália em 1908 por Attilio Mussino. Acresce o facto de esta série nos revelar, desde logo, a visão colonial e paternalista de uma África surreal e primitiva.
O pequeno negro Bilbolbul, adaptando-se às metáforas da narrativa, muda de cor:
vermelho de vergonha, verde de raiva, azul de frio...
No entanto, sem que os activos militantes anti-racistas tenham desencadeado -ao que se sabe!?- qualquer febril campanha, a figura e o nome, caricaturais, de Bilbolbul concedeu hoje inspiração e designação para um dos modernos, e importantes, festivais internacionais de Banda Desenhada, com lugar anual marcado para Bolonha, desde 2007.
Não devemos esquecer um monstro sagrado da animação, também com poderosa intervenção no universo da BD: Walt Disney. O seu colaborador Ub Iwerks, em 1928, criou a imortal figura de Mickey Mouse. Nestas aventuras, os negros surgem quase sempre caricaturados de forma muito desfavorável, quer no plano da imagem quer do comportamento, incluindo-se a linguagem.

Finalmente, no mundo do cinema, pode recordar-se um filme histórico, que marca a passagem da era do mudo para a do sonoro: O Cantor de Jazz. A figura de negro, caricaturada por Al Jolson ficou como modelo visual, ainda hoje clássico. Aconteceu em 1927, nas vésperas de Tintin no Congo...
Recordámos alguns dos percursores de Hergé/Tintin. Mas podemos, igualmente, citar dois sucessores, também com prestígio e divulgação internacionais: Franquin/Spirou e Uderzo/Astérix. Coerentemente, procurámos manter a mesma característica caricatural -essencial!- no retrato físico e psicológico das personagens, nomeadamente das negras.
E aquilo que existe de comum entre os negros das histórias de Dirks, Mussino, Disney/Iwerks, Hergé, Franquin e Uderzo é precisamente o exagero caricatural, no que se pretende constituir como uma caracterização, estereotipada, dos traços físicos e psicológicos dum grupo racial. Se formos imparciais, encontramos essa mesma visão esquemática, embora deformadora, na definição gráfica de personagens brancas, amarelas ou vermelhas...

Tintin, ele próprio, não pode considerar-se como uma figura particularmente favorecida: figura meã, mesmo frágil, sem qualquer atributo físico especial ou qualquer invulgar faculdade, desfavorecido por algumas ridículas indumentárias, possuindo uma cabeça redonda (ou oval!), olhinhos minúsculos, um traço por boca, espessas sobrancelhas e generosas orelhas, uma batatinha saliente em vez de nariz e aquela insólita poupa loura no alto da testa, quase passando por chinó ou extensão, como imagem de marca... Uma caricatura, de facto!
E também os seus principais companheiros de jornada, brancos, nada devem à perfeição: o capitão Haddock, truculento, impaciente, alcoólico e malcriado; os manos Dupond/t, broncos e estúpidos, embora bem intencionados; o professor Tournesol, ridículo, surdo que nem uma porta e, talvez por isso, distraído até ao absurdo; Bianca Castafiore, obesa e nariguda... Talvez se safe Milou, filósofo e moralista, embora muitas vezes dividido entre a honra e a tentação.
Resta abordar, ligeiramente, o pendor estético de Hergé, por vezes invocado para justificar algumas “falhas” icónicas. Ainda que ele próprio, e com razão, considere as suas primeiras obras, nomeadamente as da Rússia e do Congo, integradas numa fase de aprendizagem -quer no domínio do traço quer na organização narrativa-, a verdade é que em 1930 o seu nível técnico era já bastante apreciável.
Basta recordarmos alguns trabalhos anteriores, sobretudo os divulgados no Centro Pompidou, em Paris, durante a fabulosa Exposição Hergé, de 20 de Dezembro de 2006 a 19 de Fevereiro de 2007.
Limitamo-nos a reproduzir desenhos e ilustrações de negros, o tema aqui em destaque, para se poder facilmente concluir que cabe sobretudo o febril ritmo de trabalho imposto pela semanal publicação das pranchas, em 1930 e 1931, a responsabilidade maior pela deficiente qualidade gráfica das vinhetas.
Trata-se de trabalhos produzidos entre 1922 e 1927 (tinha Hergé de 15 a 20 anos), e interpretam cenas de Chahut Jazz e temas coloniais, a vocação missionária e a prática missionárias, sobretudo. Para além do “estilo” estereotipado, e caricatural, já patente nas ilustrações, pode apreciar-se aqui uma qualidade estética apreciável.
Formalmente, deixámos aqui as explicações lógicas possíveis.
António Martinó de Azevedo Coutinho