António Martinó de Azevedo Coutinho
BANDA DESENHADA,
PASSAPORTE PARA O MUNDO
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O jornal Público, para além de outras louváveis iniciativas, constitui-se como regular intermediário nacional de algumas produções editoriais estrangeiras. Nomeadamente no sector do cinema, através da edição de alguns títulos (filmes ou séries) consagrados, e da banda desenhada, por meio da escolha, adaptação e lançamento de certas publicações de qualidade, o jornal merece o reconhecimento e aplauso dos apreciadores destes géneros. Como é o caso da recente publicação, em curso, de uma curta colecção intitulada Rotas e Percursos. O seu conteúdo abrange a descrição turística de sete cidades -Veneza, Roma, Nova Iorque, Florença, Marraquexe, Praga e Bruxelas-, sendo os respectivos roteiros ilustrados por mestres da BD.
Esta é a principal, e original, característica de um tipo de publicação quase vulgar entre os roteiros de viagem. Teria sido interessante, e honesto, acrescentar à vasta publicidade divulgada a propósito que esta colecção foi apresentada, em 2009, pela Lonely Planet, uma grande editora de guias turísticos, em cooperação com a Casterman, um nome consagrado no mundo das publicações de BD. A intenção foi simples: conjugar a força dos textos, bem concebidos, com o impacto das imagens desenhadas por autores de reconhecido talento, nunca perdendo de vista o rigor e a eficácia da informação prestada. Curiosamente, a sequência da divulgação original foi diferente, começando com Nova Iorque, Bruxelas, Roma e Veneza.
Os primeiros volumes entre nós divulgados -Veneza e Roma- contam, respectivamente, com ilustrações da autoria do italiano Hugo Pratt (1927-1995) e do francês Jacques Martin (1921-2010). Porém, mais do que terem contado com desenhadores de excepção, o mais significativo consistiu em terem disposto de “cicerones” invulgares: Corto Maltese e Alix. Personagens de primeiro plano, embora dotados de muito distintas personalidades, estes dois “heróis” de papel estão indissoluvelmente ligados às cidades agora apresentadas. Veneza constituiu o cenário virtual de uma das histórias mais fascinantes de Corto e o cenário real de muitas vivências pessoais do seu autor, Hugo Pratt. Por seu lado, para quem conhece as aventuras de Alix, torna-se perfeitamente dispensável falar da importância da Roma imperial nessa fabulosa trama romanesca.
Mas o mais curioso é que esta moderna, efectiva e funcional associação da BD ao universo turístico me conduziu aos arquivos de memória, onde encontrei casos similares bem mais interessantes do que estes.
A relação é suficientemente vasta para que deva ser muito restritiva e muito seleccionada, nos exemplos aqui trazidos. Resumo-os a dois, escolhendo épocas, lugares e autores bem caracterizados.
O primeiro é “mestre” Harold Foster, o imortal autor da gesta do Príncipe Valente. Canadiano, nascido em 1892, viveu e produziu nos Estados Unido, onde morreu em 1982. Entre as sua criações destaca-se Prince Valiant, herói dos tempos do Rei Artur, com aventuras divulgadas durante mais de três décadas, a partir de 1937. Entre nós, pelos anos 50 e 60, foi n’O Mundo de Aventuras que a saga do Príncipe Valente atingiu uma invulgar popularidade.
Trago aqui a reprodução de uma das suas pranchas (ou páginas), precisamente dotada de um raro sentido de divulgação turística. Em plena Terra Santa, o nosso herói percorre itinerários bíblicos, que hoje qualquer turista ou peregrino repete, sendo devidamente assinalado, com adequada legenda (muito invulgar em Harold Foster), cada um dos locais mais célebres.
O outro exemplo, europeu e mais moderno, é assinado pelo francês Jean Graton, nascido em 1923. O herói, Michel Vaillant, piloto de Fórmula 1, estreou-se entre nós na revista Cavaleiro Andante. Pelo início dos anos 80, na aventura com o título português Rali em Portugal (Cinc Filles et les Moteurs), a cidade de Lisboa surge “retratada” de forma claramente turística, assim como cenários de Sintra, Montejunto, Buçaco e outros troços do trajecto da nossa então mítica prova internacional de rali, com termo no Estoril. Outra destas histórias, com cenário realista inspirado em Macau (ainda sob administração portuguesa), foi publicada em 1984, tendo como motivo central a corrida internacional no circuito da Guia.
No entanto, a lembrança mais significativa que a recente colecção Rotas e Percursos me provoca tem a ver com uma inesquecível exposição entre nós apresentada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Abril de 1986. Intitulada A Arquitectura na Banda Desenhada, foi organizada em Angoulême, França, no âmbito do Festival alusivo aí realizado anualmente. O seu magnífico catálogo, reproduzindo os 110 grandes painéis expostos, ficou a atestar a excepcional qualidade duma mostra que, apesar do quarto de século já decorrido, continua a representar um momento invulgar na abordagem cultural à mensagem e forma dos quadradinhos.
Tal como a designação geral da mostra dava a entender, o seu conteúdo englobou “duas disciplinas da actualidade”. Assim rezava a introdução geral, reunindo depois em sucessivos capítulos algumas das suas alianças lógicas: a história, a cultura, a estética e os estilos, o urbanismo, o clima e o mistério, a indústria, os transportes, também o turismo...
Ora é precisamente aqui, neste capítulo, disperso ou refeito pela aliança da obra de vários criadores, que este trabalho colectivo em muito antecipa, e em muito ultrapassa, os objectivos dos actuais guias. Por exemplo, é muito mais dilatado o seu âmbito, pois poderia acrescentar-lhes as interpretações “turísticas” de outras cidades, como Atenas, Istambul, Paris, Londres, Las Vegas, Berlim, Barcelona ou Cairo...
Contou esta descrição “aos quadradinhos” com criadores como Uderzo, Chaillet, Craenhals, Tardi, Duvivier, Jacobs, Mezieres, Varenne, Bilal, Bertrand, Tripp, Goetzinger, Clement, Benoit, Dany, Loustal, Floc’h, Clerc e alguns outros, enfim, uma verdadeira selecção internacional do mais alto nível, em épocas, escolas e estilos complementares, apta a revelar uma impressionante relação qualidade/quantidade nos domínios estéticos e comunicacionais da BD.
A iniciativa do Público é meritória. No entanto, os objectivos e os objectos que são envolvidos nesta campanha “turística” ficam muito aquém daquilo que, há décadas, a banda desenhada já antecipara. Nesses tempos, ainda um pouco ingénuos quanto a tais perspectivas promocionais, bastaria ter surgido um editor arguto, com uma visão premonitória do marketing actual, para que tivéssemos então uma colecção mais ampla, mais diversificada e mais representativa dos dois universos em causa: o do turismo e o da banda desenhada.
Contentemo-nos no entanto com o que temos. Já não é mau de todo...António Martinó de Azevedo Coutinho
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