António Martinó de Azevedo Coutinho
Aqui há dias, quando vasculhava gavetas e estantes de antigo uso, encontrei algumas preciosidades. Entre estas, figurava um pequeno folheto dedicado às Bases do Acordo Ortográfico, feito pelas Academias de Portugal e do Brasil. Até aqui tudo pareceria “normal”, não fora a data: 25 de Setembro de 1945...
Um decreto, com o número de ordem 35 228 e a data de 8 de Dezembro de 1945, consignou entre nós uma significativa reforma que informou, e formou, muitos cidadãos portugueses. Um destes fui eu próprio. Na escolaridade primária que entretanto frequentava, já de passagem para o Liceu, como a outros companheiros de estudo e de brincadeiras desses tempos difíceis, foram tais bases que estruturaram em todos nós a arquitectura fundamental da língua usada na comunicação, sobretudo a escrita.
Mas a importância deste acordo ortográfico entre Portugal e o Brasil não se limita -não pode limitar-se!- a uma simples nota personalizada, mera coincidência de valor sentimental. Bem pelo contrário...
A longa e agitada crónica das relações culturais entre os dois países irmãos inclui, entre os seus capítulos mais polémicos, as aproximações e as separações linguísticas. Muito depois do Grito do Ipiranga que criou o Brasil independente, encetou-se um longo e tortuoso processo de “unificação” da escrita da original língua comum que os naturais processos sócio-culturais tinham feito “divergir”. Nem sempre este processo foi feito em conjunto, jogando cada Pátria, por vezes e como nos futebóis, por conta própria...
É dos princípios do século XX que a História guarda alguns dos episódios pioneiros desta crónica, aparentemente científica, onde a politiquice (como em tudo!) faz das suas. Terá sido por voltas de 1907 que a Academia Brasileira de Letras começou a simplificar a escrita das suas próprias publicações. A implantação da República em Portugal trouxe-nos a consciência de que era imperioso uniformizar, simplicando-a também, a complicada ortografia entre nós então usada.
E rezam as crónicas do tempo que a Comissão encarregada dessa missão a terá cumprido a preceito, estabelecendo a nossa primeira Reforma Ortográfica, em 1911. Porém, o Brasil não aceitou imediatamente tal reforma, pelo que só em 1916 a sua Academia de Letras resolveu harmonizar a ortografia com a norma portuguesa. Mas, apenas quatro anos depois, a mesma Academia revogou a anterior decisão...
Em 1924, as Academias de ambos os países concordaram em procurar uma grafia comum. Daí resultaria, em 1931, o primeiro Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal, que pretendia suprimir as diferenças, unificando e simplificando a língua portuguesa. Porém, nunca foi posto em prática...
Os esforços continuaram, com outros episódios intercalares, até 1943. Então, foi solenemente redigido, em conjunto, o primeiro Formulário Ortográfico. É precisamente este a base fundamental para o Acordo Ortográfico (aqui, por piedosa intenção, dispenso-me de lhe aplicar um numeral...) de 1945, ou seja, o constante do folheto atrás citado.
Para que se saiba, para além da aprovação oficial portuguesa, registe-se o Decreto-lei 8 286, de 5 de Dezembro de 1945, pelo qual o Brasil solenizou o acordo. Uma vez mais (onde é que já vimos esta fita!?), os nossos irmãos da outra banda rasgarão o texto, rejeitando-o através de novo Decreto-lei, o 2 623, de 21 de Outubro de 1955. Os brasileiros, então, regressariam à ortografia praticada anteriormente ao Formulário de 1943...
Esta nova modalidade do jogo do gato e do rato regressaria em 1971 e 1973, quando no Brasil e em Portugal, respectivamente, foram promulgadas pontuais reduções de algumas divergências ortográficas.
Em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram um novo projecto de Acordo, que nunca seria aprovado oficialmente.
O presidente brasileiro José Sarney, no ano de 1986, promoveu um encontro dos sete países de língua portuguesa (ainda não contava Timor Leste), onde foi apresentado o Memorando sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Quatro anos depois, desta vez por iniciativa da nossa Academia de Ciências, foi convocada nova reunião onde se juntou ao anterior documento uma Nota Explicativa. Ficou assente que o Acordo aí “decidido” entraria em vigor no dia 1 de Janeiro de 1994, após terem sido depositados todos os instrumentos de ratificação pela totalidade dos Estados signatários.
Em 1996, apenas Portugal, Brasil e Cabo Verde tinham cumprido o compromisso.
Então, “democraticamente”, os ministros da Educação da CPLP, reunidos na cidade brasileira de Fortaleza, em 2004, propuseram a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, mesmo sem ratificação por parte de todos os seus membros.
Depois, logicamente, este empenhado e rigoroso processo deu no que deu...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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