Leituras
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1. O efeito causado pelo facto de Bento XVI ter citado um imperador bizantino tem-me levado a reflectir sobre a necessidade premente de conhecermos melhor onze séculos de História, tradicionalmente ignorados na escolaridade portuguesa, tanto secundária como universitária. Quando Constantino refundou a velha Bizâncio com o nome de Constantinopla, a 11 de Maio de 330, aquilo que é hoje Portugal era uma província do Império Romano, povoada por gentes em cuja faixa menos romanizada se podia descortinar uma certa demência (daí a célebre frase latina “delirant isti Hispani”). Quando Constantinopla foi conquistada por um exército islâmico de 100,000 soldados (contra os 10,000 cristãos que defendiam a cidade) a 29 de Maio de 1453, era rei de Portugal D. Afonso Vê os portugueses estavam numa das poucas fases da sua história em que eram respeitados internacionalmente: só assim se compreende que a irmã do rei, D. Leonor, tenha podido casar com o Sacro Imperador Romano, Frederico III.
A queda de Constantinopla é uma data traumática na história da cristandade. Não por os conquistadores terem sido muçulmanos, mas por todo o processo que conduziu à derrocada final do Império Romano do Oriente (no saque de Constantinopla por cruzados cristãos em 1204 é melhor nem falar). No Concílio de Florença de 1439, aventou-se a hipótese de o ocidente católico prestar ajuda militar ao oriente ortodoxo para defesa da Cidade de Constantino, mas sob condição de as igrejas católica e ortodoxa se reunirem. Nesse concílio, foi uma delegação de monges do Monte Aios, zeladores implacáveis da Ortodoxia, que impossibilitou tal decisão. O resultado, esse já o sabemos.
2. 0 meu fascínio pela civilização bizantina já vem de longe. Na discoteca do meu avô havia um single de 45 rotações com uma canção americana intitulada Istanbul. Durante a minha infância, ouvi esse disco vezes sem conta. Tinha o seguinte refrão: “why it’s Istanbul, not Constantinople, is nobody’s business but the Turks’.” Bom, em rigor não é bem assim. A palavra “Istanbul” não é turca, mas grega: é a evolução da frase “eis ten pólin” (pronunciada em grego bizantino “stinbóli”), que significa “rumo à cidade”. Sendo a Cidade, como é óbvio, só uma e mais nenhuma: a coroa da cristandade, o diadema do helenismo. Nos anos 30 do século passado, o autor britânico Patrick Leigh-Fermor empreendeu uma fascinante viagem a pé (!) da Holanda a Constantinopla, viagem relatada nos primeiros dois livros de uma trilogia a que continua a faltar o último volume (onde será relatada a chegada a Constantinopla). Ao passar a fronteira da Áustria para a Hungria, Leigh-Fermor deu-se conta de que, pela primeira vez, ninguém estranhava quando ele respondia à pergunta “para onde vais?” com a palavra “Constantinopla”. A seguir a Viena, era a única cidade merecedora de ser levada a sério.
3. Mas os monges do Monte Atos que recusaram a reunificação das igrejas católica e ortodoxa em 1439 - e assim contribuíram para a queda de Constantinopla - continuam a estar bem representados no Monte Atos de hoje. Não há leitura mais deliciosa (nem mais triste) do que o livro From the Holy Mountain: a Journey in the Shadow of Byzantium, de William Dalrymple, que visitou a montanha sagrada da Grécia durante o pontificado de João Paulo II e ficou muito surpreendido pelo facto de os monges considerarem o Santo Padre de Roma o próprio Satanás, filho da Rameira da Babilónia. “Os piores tormentos do Inferno”, disse-lhe um dos monges, “estão reservados para os bispos de Roma”. Dalrymple terá feito um esgar interrogativo, ao que o monge replicou: “o catolicismo é um culto satânico”.
4. 0 autor do Prado Espiritual, João Mosco, iniciou uma viagem pelos mosteiros do império bizantino oriental em 578 (um ano depois morreria São Martinho de Dume, que veio de Constantinopla para Braga para converter os suevos). O relato de João Mosco tem como objectivo preservar para a posteridade os aforismos e o saber da espiritualidade bizantina, mas a leitura avulta por vezes “patusca” pela carga daquilo a que hoje chamaríamos superstição. É um mundo em que anjos e demónio fazem parte do dia a dia; Cristo e Satanás lutam renhidamente pela alma humana. Pela força da oração, houve monges que fizeram uma fonte no seu mosteiro desértico. Mas, para satisfazer a futilidade de outros monges menos austeros, foi instalada uma banheira e a água secou. O abade proibiu os banhos, mas a fonte continuou seca. Só quando a banheira foi estilhaçada à machadada e que Deus fez de novo correr a água. Razão tinha São Jerónimo: “quem se banhou nas águas do baptismo, não precisa de se banhar uma segunda vez”.
O companheiro de viagem de João Mosco foi Sofrónio, mais tarde Patriarca de Jerusalém. O mesmo Sofrónio que, em 638, entregou as chaves de Jerusalém ao califa Omar, após um cerco de doze meses, na primeira grande vitória islâmica contra o mundo cristão. O califa, como homem esclarecido que era, teve uma atitude muito diferente dos Persas, que ainda em vida de Mosco tinham saqueado a cidade Santa e vendido como escravo o anterior Patriarca. Permitiu a liberdade religiosa, como aliás ocorreu logo após o saque de Constantinopla, em 1453, a mando do sultão otomano. Quando se fala de intolerância (quer islâmica, quer cristã), é bom pensarmos primeiro na experiência bizantina. Nela, temos muito que aprender.
A queda de Constantinopla é uma data traumática na história da cristandade. Não por os conquistadores terem sido muçulmanos, mas por todo o processo que conduziu à derrocada final do Império Romano do Oriente (no saque de Constantinopla por cruzados cristãos em 1204 é melhor nem falar). No Concílio de Florença de 1439, aventou-se a hipótese de o ocidente católico prestar ajuda militar ao oriente ortodoxo para defesa da Cidade de Constantino, mas sob condição de as igrejas católica e ortodoxa se reunirem. Nesse concílio, foi uma delegação de monges do Monte Aios, zeladores implacáveis da Ortodoxia, que impossibilitou tal decisão. O resultado, esse já o sabemos.
2. 0 meu fascínio pela civilização bizantina já vem de longe. Na discoteca do meu avô havia um single de 45 rotações com uma canção americana intitulada Istanbul. Durante a minha infância, ouvi esse disco vezes sem conta. Tinha o seguinte refrão: “why it’s Istanbul, not Constantinople, is nobody’s business but the Turks’.” Bom, em rigor não é bem assim. A palavra “Istanbul” não é turca, mas grega: é a evolução da frase “eis ten pólin” (pronunciada em grego bizantino “stinbóli”), que significa “rumo à cidade”. Sendo a Cidade, como é óbvio, só uma e mais nenhuma: a coroa da cristandade, o diadema do helenismo. Nos anos 30 do século passado, o autor britânico Patrick Leigh-Fermor empreendeu uma fascinante viagem a pé (!) da Holanda a Constantinopla, viagem relatada nos primeiros dois livros de uma trilogia a que continua a faltar o último volume (onde será relatada a chegada a Constantinopla). Ao passar a fronteira da Áustria para a Hungria, Leigh-Fermor deu-se conta de que, pela primeira vez, ninguém estranhava quando ele respondia à pergunta “para onde vais?” com a palavra “Constantinopla”. A seguir a Viena, era a única cidade merecedora de ser levada a sério.
3. Mas os monges do Monte Atos que recusaram a reunificação das igrejas católica e ortodoxa em 1439 - e assim contribuíram para a queda de Constantinopla - continuam a estar bem representados no Monte Atos de hoje. Não há leitura mais deliciosa (nem mais triste) do que o livro From the Holy Mountain: a Journey in the Shadow of Byzantium, de William Dalrymple, que visitou a montanha sagrada da Grécia durante o pontificado de João Paulo II e ficou muito surpreendido pelo facto de os monges considerarem o Santo Padre de Roma o próprio Satanás, filho da Rameira da Babilónia. “Os piores tormentos do Inferno”, disse-lhe um dos monges, “estão reservados para os bispos de Roma”. Dalrymple terá feito um esgar interrogativo, ao que o monge replicou: “o catolicismo é um culto satânico”.
4. 0 autor do Prado Espiritual, João Mosco, iniciou uma viagem pelos mosteiros do império bizantino oriental em 578 (um ano depois morreria São Martinho de Dume, que veio de Constantinopla para Braga para converter os suevos). O relato de João Mosco tem como objectivo preservar para a posteridade os aforismos e o saber da espiritualidade bizantina, mas a leitura avulta por vezes “patusca” pela carga daquilo a que hoje chamaríamos superstição. É um mundo em que anjos e demónio fazem parte do dia a dia; Cristo e Satanás lutam renhidamente pela alma humana. Pela força da oração, houve monges que fizeram uma fonte no seu mosteiro desértico. Mas, para satisfazer a futilidade de outros monges menos austeros, foi instalada uma banheira e a água secou. O abade proibiu os banhos, mas a fonte continuou seca. Só quando a banheira foi estilhaçada à machadada e que Deus fez de novo correr a água. Razão tinha São Jerónimo: “quem se banhou nas águas do baptismo, não precisa de se banhar uma segunda vez”.
O companheiro de viagem de João Mosco foi Sofrónio, mais tarde Patriarca de Jerusalém. O mesmo Sofrónio que, em 638, entregou as chaves de Jerusalém ao califa Omar, após um cerco de doze meses, na primeira grande vitória islâmica contra o mundo cristão. O califa, como homem esclarecido que era, teve uma atitude muito diferente dos Persas, que ainda em vida de Mosco tinham saqueado a cidade Santa e vendido como escravo o anterior Patriarca. Permitiu a liberdade religiosa, como aliás ocorreu logo após o saque de Constantinopla, em 1453, a mando do sultão otomano. Quando se fala de intolerância (quer islâmica, quer cristã), é bom pensarmos primeiro na experiência bizantina. Nela, temos muito que aprender.
Frederico Lourenço
in, 6ª DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 20-10-06, p. 30
in, 6ª DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 20-10-06, p. 30
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