Jaime Nogueira Pinto - Educação
Browne resumia depois a Longa Marcha do marxismo cultural,
da escola de Frankfurt à contracultura euro-americana dos anos 60, e daí até à
hegemonia académica, sobretudo nas Ciências Sociais e, mais especificamente,
nos “Estudos” sectoriais, que as universidades norte-americanas irradiavam para
o mundo.
E os “Estudos”, pós-coloniais, feministas, interseccionais,
proto-LGBTQ+ – que, no seu melhor, começaram por ser sedutoras “paranóias de
tipo interpretativo” com “a força e a estreiteza da loucura” (para usar a
definição de Pessoa do “critério psicológico de Freud”), capazes de nos
alertarem para realidades encobertas, de acordarem outros sentidos nas obras
literárias, historiográficas ou filosóficas, de abrirem caminhos e campos de
investigação e de criaram novas oportunidades de trabalho – foram tomados de
assalto por zelotas.
Aconteceu também que o zelo destes zelotas, com o seu vocabulário
esotérico (tanto mais complexo, sofisticado e “científico” na forma, quanto
mais oco, medíocre e manipulador no conteúdo), se foi sobrepondo a tudo o
resto… E foi seduzindo fundações burguesas e governos que, quais aristocratas
francesas acarinhando nos seus salões as iluminadas ideias que haviam de cortar
o pescoço aos seus filhos e netos, se foram rendendo ao charme discreto dos
novos “sábios dos oprimidos”.
E assim os “Estudos” cresceram e multiplicaram-se, enchendo
e dominando a academia e reinando sobre todos os animais exóticos da terra. E
desdobraram-se em Centros, Fóruns, Iniciativas e Observatórios, subjugando
aqui, domesticando ali, preservando acolá, mas observando sempre.
E eis que, em incansável demanda por opressores e oprimidos,
por macro e micro agressões, por visões alternativas e por subvenções, os
zelotas que, do alto dos seus observatórios de marfim, tinham começado por
promover a nova moral, passaram a perseguir os recalcitrantes – passados,
presentes e futuros. Cada tique de linguagem, cada acto, palavra ou omissão,
cada desvio do pensamento correcto, neutro e inclusivo, cada cisco, por mais
ínfimo, no olho de um “opressor”, ou de um autor consagrado ou de uma figura
histórica celebrada, era escrupulosamente observado, pesado, medido, condenado.
E não se pense que os “oprimidos” conheciam melhor sorte: a eles também se
exigia que não saíssem do redil e que se cingissem à identidade em que os novos
moralistas os encurralavam… É que se não parassem quietos e se não se deixassem
ficar oprimidos como lhes competia, se começassem a pensar e a reivindicar
individualidades e especificidades, como é que queriam que os detentores da
nova verdade e da nova moral os libertassem, lhes arranjassem subsídios e
empregos nos Centros, Fóruns, Iniciativas e Observatórios que eles controlavam
e os sustentam?
“Pensamento correcto” foi uma expressão abundantemente usada
pelos partidos comunistas nos anos 20 e 30; Mao Tsé-Tung repetiu-a
incessantemente nos seus escritos. Correcto, era todo o pensamento que estava
de acordo com a linha do Partido ou que batia certo com as categorias
históricas e sociopolíticas cientificamente estipuladas pelo Grande Timoneiro.
Fora dessa correcção, não podia haver pensamento – mas não deixava de haver
consequências.
DO PENSAMENTO CORRECTO AO PENSAMENTO
NEUTRO E INCLUSIVO
Dir-se-á que agora, com o actual “pensamento neutro e
inclusivo”, que actua essencialmente no condicionamento da linguagem, não há
consequências. Ou não as haverá tão imediatamente brutais e fatais. Mas não
deixa de haver supressão do pensamento “incorrecto”, ou seja, inibição do
pensamento. E se a nova ortodoxia parece não aspirar já a um tradicional
“assalto ao poder”, é só porque a influência constante e progressiva nas
mentalidades, traduzida depois em leis e regulamentos, tornou o velho “assalto”
irrelevante.
Fora do discurso consentido, todo o discurso poderá
facilmente ser denunciado como “discurso de ódio”, ao sabor do zelo e da
criatividade dos sacerdotes do novo credo e do seu Index. Acresce que esta
ortodoxia é tendencialmente elitista, acarinhando os magos e desprezando os
pastores, procurando colonizar preferencialmente, por doutrinação ou pressão,
as elites funcionais – ou, para usar uma linguagem mais consentânea, “a
população em cargos académicos, artísticos, mediáticos e empresariais”.
Mas se a resistência vem das maiorias que o pensamento
“neutro e inclusivo” discrimina, como as classes médias profissionais, as
massas populares e religiosas e o grosso da população “binária”; vem também das
minorias que o mesmo pensamento cristaliza.
PORTUGAL NO BOM CAMINHO
É por isso que consideram urgente domar a linguagem e
explicar ao povo e às crianças o novo credo. Para uma educação neutra, as
identidades nacionais devem então ser substituídas por uma humanidade global,
fluída, indistinta, volátil, inclusiva. Bandeiras, só talvez a do arco-íris,
devendo a História nacional ser reavaliada à luz do que foram “verdadeiramente”
os “chamados Descobrimentos”: nada mais do que uma empresa comercial lucrativa,
racista, esclavagista e exploradora dos povos africanos e ameríndios.
E estamos no bom caminho: temos uma investigadora que quer
anexar notas pedagógicas anti-racistas aos Maias de Eça de Queiroz, um deputado
que quer destruir o Padrão dos Descobrimentos, uns anónimos que acham que
vandalizar a estátua do Padre António Vieira é lutar contra o racismo, e um
Conselho Económico e Social que acha fundamental para a nossa economia e para a
nossa sociedade que se adopte uma nova linguagem. Não restam dúvidas: entre a
profunda ignorância de quem aparentemente pertence à “população com baixa
visão” mas que frequentemente descobrimos como parte da “população em cargos de
gestão”, estamos mesmo no bom caminho.
São tempos estranhos para a razão e para o senso comum, sob
estas acometidas orwellianas, tão apartadas de qualquer visão minimamente
realista da natureza humana, da criatividade humana e do pensamento e da acção
humana que têm tudo para acabar mal.
Segundo o novo código de Hollywood, para que um filme se
candidate aos Óscares, deverá agora ter “pelo menos um actor ou uma actriz
principais de etnias sub-representadas” (asiática, hispânica, afroamericana,
nativa-americana); e o elenco secundário terá de ter, “pelo menos, 30% de
mulheres, LGBTQ+ ou pessoas com incapacidade”, que deverão “estar também
representadas, de alguma forma, no argumento”. Enfim, perante esta sua sequela
gramsciana, empalidece, acabrunhado, o realismo socialista da Rússia de
Estaline (que sempre tinha Dziga Vertov e Sergei Eisenstein).
É todo um novo catecismo laico, mas promovido com fúrias de
Torquemada. Aplicou-se, consciente ou inconscientemente, um princípio de
desconstrução marxista, que passou da “classe social” para outras
determinantes. Onde, na Vulgata, havia Burgueses e Proletários, Exploradores e
Explorados, Patrões e Trabalhadores, há agora o mais fluído binómio
Opressor-Oprimido – ainda que com categorias igualmente inflexíveis, de raça,
de género, de comportamento social e político.
E tal como Marx, Engels, Lenine e Trotsky, que não eram
propriamente proletários, adoptaram “a teoria do Partido como vanguarda da
classe operária” para puderem liderar a revolução, também os pioneiros da
Correcção Política, que, na sua maioria, também não são propriamente “oprimidos
de origem”, adoptam agora a teoria da vanguarda para poderem guiar e pastorear
convenientemente os “novos proletários”. E assim como Marx e Engels sofriam com
a adesão dos operários franceses e alemães ao bonapartismo ou ao socialismo
patriótico, também os novos comissários políticos sofrem com os trânsfugas das
modernas massas “minoritárias” ou “oprimidas” e sabem que não as podem deixar
ao abandono. Têm de ser educadas e controladas. E, para isso, lá estão os
capatazes, os quadros médios vigilantes, na Academia, no jornal ou na estação
televisiva, prontos a seguir, por convicção, ignorância, ou dependência, a
“linha geral” e correcta, a linha do Partido, e a punir os oposicionistas e os
desviacionistas.
Para singrar neste mundo “neutro e inclusivo” há inúmeros
filões a explorar, e as figuras e os escritores de outras épocas abrem toda uma
vasta gama de apetecíveis e subsidiáveis possibilidades. E se ao ler Eça somos
imediatamente confrontados com a ausência – e a necessidade, e a urgência – de
notas pedagógicas anti-racistas, o mundo machista de Camilo, por exemplo, pleno
de “discurso de ódio” contra “brasileiros”, de mulheres que acabam em conventos
por paixões contrariadas, ou, pior ainda, que casam, têm filhos e estão
contentes, afigura-se ainda mais necessitado de delações censórias. E Camões, e
Gil Vicente, que riqueza para denúncias!
Lorena Germán, presidente do National Council of English
Teatcher’s Comittee Against Racism and Bias in Teaching of English é um exemplo
a seguir. À semelhança de Mao, que não gostava de Shakespeare ou o achava
impróprio para as massas e por isso o proibiu durante a Revolução Cultural,
Germán também não morre de amores pelo Bardo. Ou melhor, concede que “como
qualquer outro dramaturgo” Shakespeare até terá um certo “mérito literário”,
mas nada que ofusque a abjecta demonstração de “supremacia branca e
colonialista” que os seus textos, e a importância que se lhes dá, exalam. E a
violência, a misoginia e o racismo que descortina em Shakespeare, levam a
professora a sugerir que se celebrem nas salas de aula “as vozes dos
marginalizados”, até para mostrar aos estudantes “uma sociedade melhor”.
Defende ainda que “é imperativo corrigir a mensagem que os educadores e os
sistemas escolares dão às crianças”: Haverá uma linguagem “superior”? E qual
deverá ser ela? Quais são as histórias verdadeiramente “universais”? Que
História devemos transportar para o futuro?
CANCELAR SHAKESPEARE
Shakespeare não será, evidentemente, um dos eleitos, uma das
vozes a transportar para o futuro. Até porque está longe de reunir os
requisitos da nova linguagem e do novo pensamento neutro e inclusivo. É difícil
encontrar um escritor onde a Humanidade, na sua grandeza e miséria, nos limites
do sublime e da queda, no elenco dos sentimentos e dos sentidos, seja tão
intrincada e completamente recriada – e isso, não só não é bom para as massas,
como é, claramente, demais para a simplista e maniqueísta neutralização do
pensamento que nos deverá guiar
Mas haverá palavras “neutras” para falar de paixão mais inclusivas
do que as que Shakespeare usou em Romeu e Julieta? Será só de “branquitude” que
nos fala quando disseca os caminhos da tragédia, da ambição e do poder em Júlio
César? Ou quando nos confronta com o ressentimento, a malevolência e o ciúme,
em Otelo? Sim, Otelo, o “Mouro”, ou o “Negro” de Veneza, o condotiere
mercenário, integrado por Desdémona, mas olhado sempre como um “cristão-novo”
pelos patrícios. E a revolta das “minorias”, não estará lá na tirada defensiva
de Shylock, no Mercador de Veneza, ou na sombra de Caliban, na Tempestade?
Pouco importa: deixámos de precisar de Shakespeare, que só por preconceito e
por imposição racista resistiu a séculos de leitura; o que o mundo e os
estudantes agora precisam, o que todos nós precisamos agora, e urgentemente, é
de linguagem neutra e inclusiva.
Marx era um grande leitor e admirador de Shakespeare, lia-o
aos filhos e a família chamava-lhe “O Mouro”, por causa da sua obsessão por
Otelo. Via em Shylock o retrato do explorador e Timon de Atenas serviu-lhe de
ponto de partida para uma reflexão sobre os paradigmas do ouro e do dinheiro.
Mas isso eram outros tempos, tempos opressores, em que “a cultura” era mais
depressa valorizada do que cancelada, e em que o pensamento não era ainda
suficientemente neutro e inclusivo.
Felizmente, e para desgosto das Lorenas Germáns deste mundo,
não são só as “maiorias opressoras” que reagem… Alguns dos mais qualificados
membros pensantes das “minorias oprimidas” também fogem ao espartilho imposto,
resistindo ainda e sempre à neutralização do pensamento.
A grande poetiza negra americana, Maya Angelou, estava bem
ciente que Shakespeare era branco, inglês e do Renascimento, mas, recordando a
sua própria condição marginal na Carolina do Norte dos meados do século XX,
escreveu a propósito do Soneto 29 (aquele que começa “When, in disgrace with
fortune and men’s eyes /I all alone beweep my outcast state”):
Shakespeare escreveu-o para mim, esta é a condição da mulher
negra. Claro, Shakespeare era uma mulher negra. Percebo-o bem. Ninguém mais o
sabe, mas eu sei que Shakespeare era uma “mulher negra”.
Estamos com ela. Resistimos e vamos resistir à neutralização
do pensamento. Pelas maiorias e pelas minorias.
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