Jaime Nogueira Pinto e os 100 anos do PCP
É natural que os movimentos e partidos políticos celebrem o seu passado, a sua identidade, os seus símbolos, os seus mártires. Fazem-no todos, à esquerda e à direita, conforme podem e os deixam. Mas as ideologias, os movimentos, as forças políticas, têm os seus valores e os seus contravalores, valores que encerram apologias e negações, amigos e inimigos, passados a exaltar ou a abominar. Em princípio, um liberal – com mais ou menos iniciativa – valorizará a liberdade de comércio e os impostos baixos acima das taxas alfandegárias e de segurança social, opondo-se à supremacia estatal; um conservador, a unidade da família e a defesa da vida, opondo-se ao aborto, à eutanásia e à institucionalização e instrumentalização de géneros, casamentos e procriações alternativas; um nacionalista preferirá a independência do país, a uma dependência estrangeira, mesmo com vantagens económicas.
Quero com isto dizer que um defensor de Salazar poderia, por
exemplo, enaltecer o Estado Novo no plano da defesa da Nação e da exaltação da
História ou como Estado de obras e de desenvolvimento económico, mas seria
absurdo que enaltecesse Salazar como campeão do pluralismo democrático ou do
liberalismo.
Poderá então um partido comunista, e um partido comunista
particularmente alinhado com a “experiência soviética”, celebrar-se como “pai
da democracia” e das “amplas liberdades democráticas”? Aqui, neste canto da
Europa que resiste ainda e sempre à equiparação do comunismo ao nazismo, parece
que não só pode como até deve.
Mas por maior que seja a boa vontade – e não pondo em dúvida
a dedicação do PCP à causa da classe operária e da igualdade entre os homens ou
até os bons sentimentos e a boa consciência moral dos seus militantes –
parece-me difícil se não mesmo impossível não ver como ridícula e absurda a
celebração desta agora centenária organização como campeã da liberdade das
pessoas e das ideias.
Absurdo e ridículo? Perguntarão alguns. Como, se o ideal
comunista permanece vivo e é, ainda e sempre, o da democracia avançada e o da
libertação total? Talvez por isso neste centenário, além das bandeiras
vermelhas generosamente penduradas por lusas praças e avenidas (com
facilidades, ou pelo menos com autorizações, autárquicas), tivessem voltado
alguns comentadores a falar de “utopia nunca realizada”. Longe de se mostrarem
satisfeitos com as muitas e duradoiras tentativas de realização do imorredoiro
ideal, parecem propor que as ignoremos para que se não cesse de tentar torcer o
presente até que os amanhãs cantem. Nada, portanto, de errado com a utopia… as
tentativas de realização é que lhe terão, eventualmente, ficado aquém.
Mas poderá uma doutrina que divide, com arrojo e
simplicidade, a Humanidade em duas classes (começando pela oposição binária
mestra, Burguesia-Proletariado, que depois tutela todas as outras –
patrões-trabalhadores, latifundiários-camponeses, exploradores-explorados,
opressores-oprimidos), uma doutrina que defende que a luta destas duas classes
ou destes dois polos é eterna e o motor da História, ser a origem de uma sociedade
livre e pacífica? A vitória de uns será inevitavelmente a derrota e a
aniquilação dos outros e o lado a abater do binómio estará sempre e
irremediavelmente condenado. Para não falar daquilo que não cabe e daqueles que
não cabem nessa sofisticada e científica dicotomia (as classes médias, por
exemplo, e as muitas e desvairadas realidades e gentes de que se faz a
humanidade). Pouco importa: para estes experimentados utópicos, se alguma coisa
ou alguém não existe no cânone pura e simplesmente não existe, ou passa a não
existir; porque se a utopia é para ser realizada o cânone é para cumprir.
CEM MILHÕES DE 'INIMIGOS DO POVO'
Foram muitas e duradoiras as tentativas de realização da
generosa utopia. E feitas pelos próprios, por partidos comunistas, seguindo métodos
comunistas, de acordo com a vulgata e o cânone comunista e aplaudidas por
comunistas. Na Rússia, começou no Inverno de 1917-1918, e acabou mais de 70
anos depois. Começou com uma Guerra Civil, em que aristocratas e burgueses
foram eliminados. Os concorrentes liberais-democratas, social-democratas,
socialistas, mencheviques, também desapareceram; sempre em nome do sonho, da
utopia codificada num manual seguido religiosamente pelos partidos comunistas
irmãos – inclusive, pelos camaradas portugueses, que sempre fizeram questão de
apoiar a ortodoxia. Depois, já com Estaline já no poder, também o fizeram, em
1941, com o Pacto Germano-Soviético. E chamaram “revisionismo de direita” às
críticas de Khruschev a Estaline no XX Congresso; e apoiaram o esmagamento da
revolução húngara e a intervenção do Pacto de Varsóvia em Praga, em 1968.
O regime soviético começou por prender e matar os vários
“inimigos do povo”, conceito infinitamente elástico que ia da família real
russa (incluindo crianças, criados e animais de estimação – até o PAN teria uma
palavra de pesar, nem que fosse só pelos cães dos Romanov) aos kulaks, os
camponeses que tinham mais de uma vaca. O primeiro Terror foi desencadeado pelo
massacre dos reféns, depois do atentado de Fanny Kaplan contra Lenine
(Mussolini, lembre-se, não matou ninguém depois dos atentados que sofreu e
ainda libertou alguns dos seus autores: mas Mussolini era fascista e não estava
escudado pela imorredoira utopia). Ainda no tempo de Lenine, a Tcheca fez mais
de um milhão de presos e dezenas de milhares de mortos. Depois da acalmia da
NEP, o Terror intensificou-se com Estaline, com a coletivização e o Holomodor –
a fome política que matou entre dois a quatro milhões de ucranianos. Mortos
intencionalmente, à fome, entre 1932 e 1934, através da “coletivização” que os
camponeses, a quem a NEP dera posse e propriedade das terras dos feudais do
czarismo, viram como um regresso da Servidão, abolida em 1861… Mas pelo sonho é
que vamos.
Há grande discussão sobre o número das vítimas do estalinismo, no quarto de século de poder do Czar Vermelho (1928-1953), mas Robert Conquest, que tem uma excelente monografia sobre a época (The Great Terror – Stalin’s Purge of the Thirties, 1968) fica-se pelos 15 milhões. Há quem aumente, há quem diminua, mas é uma bela soma, por mais que se queira que os amanhãs cantem. Estaline era uma combinação do despotismo asiático à Ivan, o Terrível (imortalizado por Eisenstein, num filme ideologicamente ambíguo), do centralismo modernizante de Pedro, o Grande, e dos compêndios de Marx, Engels e Lenine que transformou em Vulgata. Era também um leitor atento da grande literatura russa – de Dostoievski, de Tolstoi, de Tchékhov – e gostava particularmente de Westerns e de filmes de gangsters.
Era um camponês georgiano inteligente, manhoso, sem
barreiras religiosas, éticas ou até de lealdades pessoais, que acreditava que o
medo era a grande força agregadora das sociedades e destruidora das
resistências; o medo que, realizar a utopia, tinha de ser mantido bem vivo,
pelo terror. Foi assim na União Soviética e foi assim, em proporção, na
instalação do comunismo na Europa Oriental.
Os comunistas não ganharam nunca uma eleição antes de
tomarem o poder. Mesmo na Checoslováquia, quando chegaram aos 38% com Gottwald,
em 1947, deram o golpe
de Praga em 1948. As mortandades em grande escala repetiram-se na China, com o utópico Mao, no Grande Salto em Frente e na Revolução Cultural. E no Cambodja, com os Kmerhs Vermelhos; e em África, na Etiópia de Mengistu. Chegou-se bem depressa aos tais cem milhões. Para custos de uma utopia nunca realizada, não está mal. E foram só tentativas.
Estes números que não são questionáveis nem questionados
talvez sejam reaccionários e fascistas, até porque deixam a perder de vista, em
qualidade e quantidade, a repressão dos 48 anos de “fascismo” à portuguesa.
A tentativa de construção do paraíso na terra através do
terror, que começou com Lenine e Trotsky e escalou com Estaline, foi denunciada
por Khrutschev em 1956, depois da transição 1953-1956, no famoso XX Congresso.
Parece que afinal a direcção estava certa, mas que não era bem por ali; alguns
utópicos pediram desculpa: a realização da utopia seguia dentro de momentos.
AMPLAS LIBERDADES DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Outro aspecto também muito exaltado pelo Partido das “amplas
liberdades” é a liberdade de criação literária e artística, dura e
implacavelmente sufocada aqui, entre nós, durante “a longa noite fascista”.
Nada a ver com o clima de tolerante liberdade vivido na paradisíaca União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Em 1912, no centenário do nascimento de Herzen, Lenine
retratara o poeta como um nobre liberal, um precursor do socialismo que
percebera que “a dialéctica de Hegel” era “a álgebra da revolução”; alguém que,
com Feuerbach, chegara até a evoluir para o materialismo e se entusiasmara com
as revoluções de 1848, até que o fracasso o levasse ao cepticismo. Mas enfim,
combatera “o monstro”, a monarquia czarista, por isso, apesar das suas “origens
de classe” ou das sua proveniência “aristocrática e latifundiária” o não terem
deixado entender a grandeza do socialismo, Lenine, magnânimo, incluía Herzen no
panteão da revolução.
O século anterior fora o século de oiro da Literatura Russa, com Tolstoi, Gogol, Pushkin, Dostoievski, Tchekhov, Bely; e a revolução de Fevereiro de 1917 e a revolução de Outubro trariam, inicialmente, a adesão de muitos intelectuais e escritores. Era a primeira tentativa de realização da utopia.
Mas dos escritores contemporâneos da revolução, muitos acabariam por sair da Rússia – e deste mundo.
Os poetas Aleksander Blok e Vladimir Maiakovski resolveram
ficar na pátria da utopia. Blok desiludiu-se e morreu cedo; Maiakovski, depois
de defender a Revolução, desiludiu-se também com a escalada censória dos
escritores proletários e suicidou-se ou foi suicidado. Outros, como Górki,
foram-se adaptando; outros ainda, como Osip Mandelstam, foram mortos nos campos
de concentração.
Mandelstam, concebeu o Epigrama de Estaline, em que acusava
o Secretário-Geral, “o caucasiano do Kremlin”, de ser responsável pelas fomes
que estavam a matar milhões. Disse-o a Boris Pasternak na rua, e Pasternak,
assustado, respondeu-lhe: “Eu não ouvi nada. Tu não me disseste nada.” Mas
outros ouviram-no e Mandelstam foi denunciado e preso. Pasternak intercedeu por
Mandelstam e, um dia, Estaline telefonou-lhe, dizendo-lhe que o caso de
Mandelstam “ia ser reexaminado”, que passaria da prisão para o exílio interno.
Depois perguntou a Pasternak se era amigo de Mandelstam. Pasternak deu a resposta
ambígua que o medo impunha: “Os poetas têm poucos amigos. Geralmente têm inveja
uns dos outros”. Estaline foi dizendo que “ele, por um amigo faria tudo…” e
perguntou a Pasternak se Mandelstam era um “verdadeiro mestre”. Pasternak
disse-lhe que era difícil responder-lhe assim pelo telefone e que preferia
fazê-lo pessoalmente. Aí, Estaline desligou bruscamente e Pasternak ligou de
volta, assustado; mas o Secretário-Geral “estava ocupado e não podia atender”.
Estaline sabia que a dúvida, a imprevisibilidade e a arbitrariedade eram parte integrante do terror e parecia divertir-se com isso. Mas apreciava alguns escritores seus contemporâneos – por sinal, alguns dos melhores, – e poupou-os, mantendo-os sempre em estado de alerta. Também telefonara uma vez a Michail Bulgakov, que pedira para emigrar por não conseguir sobreviver na Rússia, e dissuadira-o de o fazer, arranjando-lhe emprego. Pasternak que ficara na Rússia depois da Revolução e que ao contrário de muitos das suas relações sobreviveria, recusara-se assinar uma petição da União dos Escritores Soviéticos para a execução de militares na “Grande Purga”. O Comissariado do Povo vigiava-o, mas nunca o chegaram a prender. Estaline gostava da sua poesia e ao ver o seu nome numa lista de condenados à morte por execução, terá dito: “Deixem esse santo doido em paz”. E deixaram.
Com a morte de Estaline, e depois de um interregno,
Khrushchev tornou-se Secretário-Geral e moderou o Terror. Baixou a taxa de
ocupação do Goulag e os presos políticos passaram a ser internados em
hospícios. Mas não mudou tudo.
Em 1956, no ano do degelo de Khrutschev, Pasternak acabou O
Doutor Jivago, o seu primeiro e único romance; mas a obra foi considerada
“antissoviética” e a sua publicação não foi autorizada. O manuscrito saiu secretamente
para o exterior e, apesar da pressão dos comunistas russos, acabou por ser
publicado em Itália por Feltrinelli e depois publicado e traduzido por todo o
Ocidente. Pasternak ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1958.
O Doutor Jivago, popularizado pelo filme de David Lean, além
de ser um grande romance – como Margarida e o Mestre, de Bulgakov, ou a
trilogia da Roda Vermelha, de Soljenitsyne – não é propriamente um panfleto
anti[1]soviético. Limita-se a falar do Homem, ou de
um homem, nas suas errâncias, as errâncias de qualquer Ulisses antigo e
moderno, navegando pelo mar da vida, entre duas mulheres, duas paixões, entre
fés, entre dúvidas. Mas passa-se na Rússia Soviética do século XX e por não ser
suficientemente dicotómico ou apologético e se mover entre ambiguidades, peca
por omissão, por desvio do cânone estabelecido pelo Primeiro Congresso da União
dos Escritores Soviéticos, em 1934; um cânone que, afinal, passado que estaria
o terror e já com Kruschev, ainda vigorava. E as directivas dos “escritores
soviéticos unidos” eram claras:
O Realismo Socialista é, não apenas o conhecimento da
realidade como ela é, mas também o conhecimento da direcção que segue. E segue
para o socialismo, dirige-se para a vitória do proletariado internacional. Uma
obra de arte criada por um socialista realista é, portanto, a que mostra o
caminho e o destino inexorável desse conflito e dessa contradição, os
identifica na vida e os reflecte no resultado do seu trabalho.
Estes “escritores soviéticos unidos”, verdadeiros pais das
amplas liberdades e da democracia, eram os mesmos que faziam petições a favor
do fuzilamento “de militares desviacionistas”, sempre incansáveis, nas suas
muitas tentativas de aplanar o caminho para o Socialismo e para a Vitória
Final.
Jaime Nogueira Pinto
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