Luís Filipe Meira
A
Música como Arte Suprema
*
Cultivo
o prazer da música há dezenas de anos. Ouço música de manhã à noite e apesar de
não conhecer uma nota que seja, a música é para mim uma verdadeira paixão. Sou
um melómano inveterado, que se diverte diariamente em descobrir novos nomes e
em explorar, como ouvinte, as diversas vertentes da música. Com a honrosa
exceção da chamada música clássica – situação que espero resolver no curto
prazo – ouço e disfruto dos mais variados géneros de música. A música é para
mim a arte suprema.
Quero
com esta introdução dizer que na música já muito pouca coisa me surpreende
verdadeiramente. Posso ficar emocionado, entusiasmado, desiludido, frustrado ou
mesmo zangado com a audição de um disco, com a prestação de um artista, com a
organização de um concerto ou de um festival. Mas, surpreendido? Não será
fácil. Mas acontece e ainda bem…
E
aconteceu, no último sábado no CAEP, no concerto dos Danças Ocultas. Uma feliz
e magnífica surpresa. Reconheço a minha culpa em nunca ter dado a devida
relevância à música deste quarteto de acordeões que nasceu há muitos anos atrás.
Curiosamente, dois dos primeiros ídolos que tive, quando comecei a ouvir
música, foram Felipe de Brito e Eugénia Lima, dois acordeonistas de sucesso no início
dos anos sessenta. Mas as guitarras dos Beatles, dos Shadows e dos Stones,
fizeram-me esquecer o acordeão, esse instrumento tão popular que foi concebido
na primeira metade do século 19, tendo vindo a ser aperfeiçoado por
construtores europeus, nunca perdendo o seu próprio espaço na evolução da
música. Acordeão que sempre teve uma forte identificação com a música de raiz
mais popular, apesar de ser instrumento de imensas capacidades.
E
é aqui que entram os Danças Ocultas. Corria o ano de 1989, quando quatro
músicos ligados ao acordeão se juntaram num projeto que, para além do
desenvolvimento das suas próprias capacidades como músicos, tinha como objetivo
primordial a tentativa de afastar o instrumento do folclore tradicional,
respeitando como eles próprios diziam, “ a vontade da concertina”, mas fazendo
para ela uma música nova. O que este quarteto pretendia era mostrar a outra
face do acordeão, dando-lhe outra dignidade e demonstrar as infindáveis
capacidades do instrumento, no fundo dar-lhe dimensão.
Nasciam
assim os Danças Ocultas, com um primeiro disco em 1996 com o mesmo nome. A
evolução continuou de forma muito positiva e interessante, o mercado abriu-se e
a publicação de “AR”, o segundo disco, aconteceu dois anos depois. Neste disco o
grupo mostrava princípios muito próprios, algumas inovações técnicas e um novo
instrumento, uma concertina-baixo concebida e construída para o efeito. Com
este segundo disco o projeto ganhou outro fôlego e começou a rasgar novos
horizontes, a ultrapassar barreiras, abrindo-se a colaborações com outra
vertentes artísticas. O projeto, já de si carregado de originalidade, tornou-se
cada vez mais sólido, mais coeso e as solicitações para espetáculos e outras
colaborações começaram a chegar de todo o lado. Mais dois discos foram
gravados. As atuações em prestigiados festivais e em palcos reputados um pouco
por todo o mundo, sucederam-se. Chegaria também o momento certo para a edição
de uma coletânea, que reunisse temas dos quatro discos anteriores. “Alento” foi o nome escolhido.
E
foi também no âmbito desta compilação que o grupo organizou uma extensa
digressão, que ao longo de dois anos os levou a 14 países e a 60 concertos.
Digressão, cuja última fase começou no dia 29 de Novembro no Porto, passando
por Aveiro, Lisboa, Coimbra e Sines tendo encerrado no último sábado, aqui em
Portalegre no CAEP.
Concerto
que, como referi atrás, me surpreendeu de forma tão intensa, que me levou a
preparar este texto em formato retrospetivo para que os leitores fiquem
motivados para a audição da música tão original e de grande qualidade deste
grupo que, no passado sábado, escreveu um importante capítulo na história
recente, mas já deveras interessante do Centro de Artes e Espetáculos de
Portalegre.
Como vai sendo hábito, não estava muita gente
na sala, mas por vezes neste tipo de concertos de especificidades várias e
complexas, há vantagens em que o público vá preparado para confrontos dificeis, pois assim a comunhão é mais intensa. E aqui não resisto e
para me ajudar a definir o concerto, vou recorrer ao texto de apresentação de “Tarab”,
o quarto álbum dos Danças Ocultas. “Tarab” é um termo árabe para
designar o estado de elevação, celebração e comunhão espiritual – um êxtase –
que é atingido pelo executante e pelo ouvinte durante um ato musical bem
conseguido: “Tarab” é o objetivo da música e dos esforços de quem a pratica.
Posto
isto, não haverá muito mais para dizer, pois foi exatamente o que se passou no
concerto do CAEP. Foi essa empatia entre músicos e a pouco mais de uma centena
de espetadores que funcionou na perfeição, elevando o concerto ao quadro de
honra do CAEP, contribuindo para a forte convicção que a música é a arte
suprema.
Luís Filipe Meira
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