António Martinó de Azevedo Coutinho
UM PONTAPÉ NA CRISE
As estatísticas da bola
Já já vai o tempo em que lia, deliciado, a nossa imprensa desportiva. Mantenho uma lembrança muito positiva da grande qualidade, até mesmo literária, dos mestres da escrita desportiva indígena. Antes de se tornar um tendencioso pasquim, preocupado com rivalidades jornalísticas mais do que com a ética desportiva, A Bola era denonimada A Bíblia. Com todo o apreço pela respeitável obra religiosa, creio que aquele epíteto até tinha algo de justo e adequado.
Nos seus memoráveis anos de ouro, quando era um tri-semanário em saudável rivalidade com O Mundo Desportivo, sobretudo nos inícios da segunda metade do passado século, A Bola exibia nas suas páginas notáveis peças -reportagens, crónicas, fotografias, críticas o outros artigos de opinião- assinadas por grandes nomes do jornalismo nacional. De memória, e provavelmente até cometerei por omissão alguma injustiça, recordo Cândido de Oliveira, Tavares da Silva, Vítor Santos, Carlos Pinhão, Aurélio Márcio, Alfredo Farinha, Cruz dos Santos, Carlos Miranda, Homero Serpa...
A Bola não era, apenas, um jornal desportivo, pois chegou a constituir um verdadeiro embaixador nacional junto dos núcleos de emigrantes no estrangeiro, uma apreciável escola prática de jornalismo, enfim, um repositório do melhor que se escrevia em língua portuguesa. Como se perdeu, quase sem remédio, tal herança!
Hoje, não sinto o mínimo apelo para a leitura da nossa imprensa desportiva, tal como fujo a sete pés dos programas ditos de debate (!?) televisivo ou radiofónico sobre desporto.
Porém, como frequento a imprensa generalista, não me livro de alguns efeitos secundários, nas suas páginas dedicadas ao desporto. No dia seguinte à histórica conquista da Taça do Rei pelo aportuguesado Real Madrid versus o Barcelona, deparei com uma curiosa (e vulgarizada) estatística sobre o comportamento comparado dos maiores monstros em compita -Ronaldo e Messi- patente em dois diários.
Partindo do lógico princípio de que a estatística pertence ao domínio das ciências exactas e de que os seus resultados merecem, por isso, a devida credibilidade, dei-me ao curioso trabalho de confrontar os dados disponíveis.
Sei pouco de futebol, no entanto dominando deste o suficiente para saber o que é um golo, um passe certo ou errado, uma falta cometida ou sofrida, uma assistência, um fora de jogo, um pontapé certeiro ou falhado, enfim, tudo aquilo que constitui o normal recheio dum encontro, ainda que a objectividade possível deste se torne num delirante universo de mil e uma subjectividades. Apesar dos replays...
Mas, apesar de tudo, uma estatística deve manter-se uma estatística, nela se preservando a tal científica objectividade resistente às divergentes visões de cada adepto, até porque um jornalista -como um árbitro- tem de ser, por definição, neutro, isento, rigoroso.
A cores, no resumo estatístico à esquerda, Ronaldo registou 1 golo contra 0 de Messi; o mesmo sumário dado se revela à direita, a preto e branco. Idêntico resultado está patente, em ambos os quadros, quanto às assistências para golo: 0 a 0. E por aqui se ficam as identidades estatísticas, objectivas, pois todos os restantes índices derivam, por vezes de forma quase delirante...
Faltas cometidas – 0 por Ronaldo e 5 por Messi, no quadro esquerdo; 0 por Ronaldo e 2 por Messi, no da direita... Provavelmente, o árbitro não viu todas!
Faltas sofridas – 3 por Ronaldo e 6 por Messi; ou 4 por Ronaldo e 6 por Messi... Aqui, por excepção, não há divergências escandalosas.
Passes certos – 15 por Ronaldo e 68 por Messi; ou 9 por Ronaldo e 53 por Messi... Graus de diversa exigência técnica por conta dos agentes recenseadores?
Passes errados – 5 por Ronaldo e 4 por Messi; ou 6 por Ronaldo e 15 por Messi...
Alguém deve estar a precisar, com urgência, de mudar as lentes!!!
Remates, finalmente, o que também pareceria um dado objectivo – 6 por Ronaldo e 3 por Messi; ou 4 por Ronaldo e 1 por Messi? Em que ficamos? Ou um remate já não é um remate?!
Se no capítulo “matemático” da apreciação crítica ao jogo nos deparamos com tamanhas contradições, valerá a pena perder tempo com a leitura restante? Cada um, em função do seu apreço pessoal pelo futebol e pelos respectivos valores, que decida em conformidade.
Por mim, neste caso, passei directamente às páginas do Sudoku. Números por números, algarismos por algarismos, estes sempre são mais certeiros. E indiscutíveis, universais, lógicos, sem qualquer concessão a subjectividades.
Depois, há a crise. E aqui, os números fazem lembrar, outra vez, as estatísticas da bola...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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