António Martinó de Azevedo Coutinho
Até agora, depois da “introdução” ao caso (o actual processo “inquisitorial” contra Tintin au Congo), da evocação das razões sentimentais que me ligam ao aventureiro, do “retrato” do contexto sócio-político da Bélgica dos anos 30, de uma breve abordagem à violenta crónica do Congo -ontem como hoje-, da sumária apresentação cronológica do álbum em causa e, por fim, das “explicações” de Hergé, chegou o momento de iniciar uma análise tão detalhada quanto possível das “queixas” concretas e, também, de outros eventuais traços discriminatórios (e não só!) encontrados nas polémicas páginas.
Nesta análise, levaremos em conta as diferenças mais significativas entre as edições fundamentais da obra nos seus dois períodos: a criação (1930-31) e a reformulação (1946-47). Complementarmente, abordaremos as passagens, sequências ou vinhetas, que mais frequentemente costumam ser apontadas como exemplos de latente ou evidente racismo.
Tintin au Congo é uma história aparentemente sem grande enredo dramático, simples e quase linear. Relata a ida do jovem jornalista Tintin ao Congo Belga. Depois de alguns incidentes durante a viagem, sobretudo centrados no cão Milou, a dupla é recebida com alegria pelos congoleses, que já conheceriam as suas proezas vividas na Rússia Soviética.
Depois, Tintin aluga um velho Ford T, do famoso modelo de 1910, e parte pela vasta região fora, aparentemente para cumprir a sua missão jornalística, ainda que não se tenha percebido claramente qual esta será...
Juntamente com Coco, o seu pequeno assistente africano, Tintin vai caçar animais selvagens, o que constitui tema para algumas páginas da história. Ele matará ou maltratará diversos animais, desde quinze antílopes (massacrados!), uma jibóia (de espécie que nem sequer existe em África!), um macaco (que é esfolado!), um búfalo, um crocodilo, um leopardo, uma serpente, um leão, outro macaco, um elefante (abatido por engano!), um rinoceronte (dinamitado!), eu sei lá...
No contacto com os naturais, conhece sucessivamente o reino dos Babaoro’m e a tribo rival dos m’Hatouvou, depois uma missão cristã e o mundo ignoto dos pigmeus. Acaba defrontando alguns sicários do célebre “gangster” de Chicago Al Capone (antecipando uma próxima, e sonhada, ida à América) e, vencidos estes, é salvo miraculosamente por um pequeno avião, quando estava quase a ser esmagado por uma manada de búfalos selvagens...
Esta inesperada desaparição da dupla, pela “ascensão aos céus”, criará entre os congoleses uma aura de divindade, dedicada aos “heróis” e representada pela complexa imagem final da história.
O confronto entre começo e o final do álbum é, desde logo, um motivo de real interesse, embora praticamente desprezado pelos apressados críticos desta BD.
A primeira vinheta, em ambas as versões, apresenta diferenças singulares.
A preto e branco, Tintin declara a um pequeno grupo de admiradores e jornalistas que vai embarcar no porto de Anvers, a bordo do navio “Thysville”. Entre estes, está um escuteiro, devidamente equipado, e algumas crianças, onde se destacam Quick e Flupke (Quim e Filipe). Mais ao longe, dois funcionários dos caminhos de ferro (ou bagageiros?) informam-nos sobre o contexto:
- Que se passa?
- É o senhor Tintin, o repórter do Petit Vingtième, que parte para o Congo.
A cores, uma década e meia depois, o grupo que envolve Tintin mantém o escuteiro fardado assim como Quick e Flupke. Entre os jornalistas, contam-se agora, facilmente reconhecíveis, o próprio Hergé (uma homenagem do autor à sua criação!?) e os seus companheiros de estúdio Edgar-Pierre Jacobs e Jacques Van Melkebeke. Tintin, desta feita, não fala e é um dos jornalistas que lhe diz adeus, desejando-lhe boa viagem e boa sorte. Num plano mais afastado, em vez dos funcionários, estão Dupont e Dupond, o primeiro dos quais diz ao segundo:
- Parece que é um jovem repórter que parte para África...
Estas diferenças não são suficientemente significativas no contexto narrativo e, embora contendo uma assincronia temporal -os manos Dupont só aparecerão nas histórias assim como os colaboradores de Hergé só aparecerão no estúdio alguns anos depois das origens de Tintin no Congo- nada retiram à absoluta normalidade de uma tranquila partida para o além-mar, em África.
O mesmo não acontece com a vinheta final da história, encarada nas suas duas versões.
Da primeira, a preto e branco, para a segunda, a cores, podem ser notadas “subtis” diferenças, algumas das quais contabilizáveis no sincero esforço de Hergé para eliminar (ou reduzir) certos traços mais visíveis de paternalismo ou racismo.
Globalmente, há desde logo uma diferença abissal entre a partida de Tintin da Europa e a sua posterior partida de África.
Serge Tisseron, na sua interessante obra Tintin no Psicanalista (Bertrand Editora, Venda Nova, 1987), escreve a tal propósito: “Esta separação não mereceria outro comentário a não ser o da sua extrema simplicidade se o álbum não terminasse por outra partida, trágica esta última. Trágica e muda. Tintin no Congo abre-se sobre os sorrisos dos Brancos e fecha-se sobre as lágrimas dos Negros.”
Já sabemos que Tintin, para os seus hospedeiros, desapareceu de forma enigmática, quase “sebastianista”. Em terra, ninguém se apercebeu da mágica “aparição” de um biplano que provocara a sua “ascensão” aos céus, quando quase era massacrado por uma manada descontrolada de búfalos.
Daqui decorre a explicação, ingenuamente colonial, de toda a encenação dramática representada na última grande vinheta: as efígies dos desaparecidos são adoradas, a sua memória é valorizada em dor e em pranto (partilhados por animais), os seus objectos (como a máquina de filmar) são quase sacralizados, o seu exemplo e o seu modelo são explorados a diversos níveis, por adultos, por e para as crianças e até por animais.
Nas duas versões há diferenças das quais registamos, apenas, as mais evidentes:
• As falas “à preto” são claramente adoçadas na versão a cores:
• A alusão à “mãe” Bélgica é emendada para: Europa;
• Ka-fé foi escrito, correctamente, café;
• Desapareceu a maioria dos chapéus e a totalidade das polainas (sinais de imitação e dependência civilizacional) ostentados pelos negros;
• Foram “abolidos” os pequenos e piegas animais “indígenas” domésticos, como o cágado e o rato...
Continuaremos no próximo número.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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